Arquitetura hostil a sem-teto, denunciada como aporofobia pelo Padre Julio Lancellotti, também está no Recife

Termo se popularizou quando religioso quebrou a marretadas pedras instaladas em um viaduto que era abrigo para a população de rua. Exemplos do tipo já são vistos na capital pernambucana
Katarina Moraes
Publicado em 27/08/2022 às 8:00
Arquitetura Hostil no Recife - Ernesto De Paula Santos Foto: DAY SANTOS/JC IMAGEM


Ferros pontiagudos debaixo de marquises, refletores virados para a calçada e retirada de bancos de espaços públicos. São instalações que, no dia a dia pelo Recife, passam despercebidas para a população em geral, mas se tornam mais uma violação do direito à cidade a quem já menos o detém: as pessoas em situação de rua.

A tendência apelidada de “arquitetura hostil” se popularizou quando o padre Julio Lancellotti, da paróquia de São Miguel Arcanjo, na cidade de São Paulo, quebrou a marretadas pedras instaladas em um viaduto que era abrigo para a população de rua. Uma prática que ele chama de aporofobia - a aversão a pobres.

Leia também: Moradores de Boa Viagem fazem passeatas e abaixo-assinado contra instalação de centro para população de rua na região

Na capital pernambucana, já é possível enxergar exemplos do tipo em diferentes regiões. “Tenho notado uma certa proliferação desse tipo de estratégia especialmente no Centro da cidade, que tem uma arquitetura mais amigável para o pedestre, com calçadas recuadas com cobertura ou marquises, que protege quem precisa dormir ali à noite”, afirmou o arquiteto e urbanista Silvio Melo Júnior.

 

JC identificou pinos que impedem a permanência de quem vive nas ruas em estabelecimentos comerciais do Centro e da Zona Sul do Recife. A reportagem entrou em contato com ambos os estabelecimentos para obter um posicionamento, mas não foi respondida sobre a motivação da instalação.



Coletivos assistenciais também notaram o crescimento das técnicas e denunciaram o preenchimento da parte inferior de escadas em uma praça infantil da orla de Boa Viagem, no 2º Jardim. A Prefeitura, no entanto, negou a intenção do serviço tenha sido expulsar gente sem teto.

“A Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) esclarece que realizou um serviço de reforço na alvenaria por causa do desgaste acarretado pela maresia na estrutura”, disse, por nota.


Na capital, a última contagem da quantidade de pessoas de rua, feita em 2019, apontava que havia 1.400 sem teto na cidade. Um novo censo é feito em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), com previsão de que seja concluído em dezembro; mas, mesmo sem o resultado, o aumento dessa população nos últimos anos é claro.

Em contrapartida, a rede de acolhimento da cidade conta com apenas 619 vagas distribuídas por 16 unidades, das quais 80% se encontravam ocupadas na semana da publicação desta reportagem. A Prefeitura do Recife alegou que a quantidade de vagas aumentou 14% de 2021 até hoje. 

Em junho de 2021, o município anunciou a contratação de 200 vagas em hotéis e pousadas para acolher esse público, mas só possui uma instituição cadastrada hoje, a Pousada Solar do Lazer, que acomoda 60 pessoas. "As pessoas são levadas para a hospedagem de forma gradativa, a partir de uma seleção de perfil e possibilidade de adaptação. O edital foi relançado e segue aberto para inscrever novos interessados", disse o município.

Combinado a esse cenário, 13% da população do Grande Recife vive em extrema pobreza, o que a torna a região metropolitana com o maior percentual do Brasil, segundo o boletim Desigualdade nas Metrópoles, divulgado neste agosto. Cerca de 39,7% da cidade vive abaixo da linha da pobreza - com menos de R$ 465 por mês.

Ao mesmo tempo, a cidade aparece com frequência no topo do ranking de aluguel mais caro no Brasil. Sem renda para moradia e sem abrigo, as pessoas procuram as ruas - que reagem à chegada delas pela falta de políticas públicas que as acolham e que garanta a segurança na cidade. “A vontade de repelir é tanta que ele se transforma numa antítese da arquitetura, cujo sentido é abrigar as pessoas”, pontuou o arquiteto e urbanista Silvio Melo Júnior.



Presidente do coletivo Unificados pela População Pop Rua, Rafael Araújo pontua que a tentativa constante de expulsão dessas pessoas viola desde os direitos mais íntimos aos mais coletivos. “Afeta a auto estima e cria a percepção de que não é um cidadão nem é bem quisto na cidade, mas também a garantia de direitos, porque não se pode usufruir do espaço público.”

Projeto de lei quer proibir prática

Na Câmara Municipal do Recife, tramita um projeto de lei proposto pela vereadora Liana Cirne (PT) em dezembro de 2021 que veda técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público. Especificamente, a instalação de pedras pontiagudas ou ásperas, pavimentações irregulares, pinos metálicos pontiagudos, cilindros de concreto nas calçadas e bancos divididos.


Até agora, o PL nº 23/2022, nomeado de "Lei Padre Júlio Lancelotti", recebeu parecer favorável das comissões de Planejamento Urbano e Obras e de Meio Ambiente. Ainda aguarda parecer da Comissão de Legislação e Justiça e não tem previsão para ir à votação no plenário. Caso aprovado, precisará ser regulamentado: visto que não apresenta como ou quem deverá fiscalizar a prática e qual a punição para quem descumpri-la.

Questionada sobre se tem intenção de aprovar o projeto, a Prefeitura do Recife disse que "não se pronuncia sobre legislação ainda em tramitação e, portanto, sujeita a alterações".

Hostilidade como projeto de cidade

O conceito de arquitetura hostil, no entanto, vai além dos mobiliários citados contra pessoas em situação de rua. Artigo da pesquisadora Shayenne Barbosa Dias, que analisou o bairro nobre do Espinheiro, na Zona Norte do Recife, mostrou que a construção de uma região pode ser uma estratégia para afastar a permanência de pessoas pobres.

Ela pontuou que o Espinheiro não tinha sequer um espaço de lazer público, por exemplo. “Um bairro sem um local de encontro ou descanso não é atrativo para as pessoas, a arquitetura cumpre papel no acolhimento e integração das pessoas e as relações estabelecidas, no espaço da cidade”, escreveu.

Silvio Melo pesquisou para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) como a “desconfiança” no Recife, relacionada à sensação de insegurança, tem provocado mudanças na arquitetura, usando como objeto a construção da Via Mangue. Pelo aumento da movimentação ao redor da avenida, ele observou o surgimento de construções cada vez mais fechadas.

“A cidade está ligada à ideia de coletividade. A fragmentação dela a torna mero espaço de passagem. O primeiro seria tentar concentrar pessoas nos ambientes, com um hibridismo na arquitetura, por exemplo, com pessoas morando em cima de comércios”, opinou.

O que disse a Prefeitura do Recife

O município enviou duas notas sobre o assunto à reportagem. Confira:

Primeira nota:

"Em dezembro de 2019, a Prefeitura do Recife inaugurou o Abrigo Noturno Irmã Dulce; em 2020, o Abrigo Edusa Pereira para Pessoas Idosas; e em 2021, foi adquirido um novo espaço para acolher crianças e adolescentes, ampliando a rede em mais de 82%. Após o credenciamento de hospedagem social, a rede de acolhimento institucional da Prefeitura passa a contar com 16 unidades, incluindo o Abrigo Emergencial, que acolhe famílias que ficaram sem moradia devido a alguma situação de calamidade pública, e as vagas de hospedagem social. Atualmente, a rede de acolhimento conta com 619 vagas e 80% delas estão ocupadas. Apenas de 2021 pra cá, a rede de acolhimento institucional da Prefeitura do Recife ampliou de 539 para 619 as vagas disponíveis, representando um aumento de 14%.

Atualmente, a Secretaria de Assistência Social trabalha, em conjunto com a sociedade civil e UFRPE no Censo Pop Rua, e o trabalho de campo, que consiste em entrevistas, deverá ser iniciado no mês de outubro. A previsão é que o Censo Pop Rua seja concluído em dezembro. A política pública da Assistência Social do Recife é garantida à população em situação de rua a partir da atuação dos profissionais do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS). Tais profissionais trabalham diariamente realizando escuta ativa e ofertando os serviços de acolhimento institucional.

Em relação aos equipamentos infantis do II Jardim, a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) esclarece que realizou um serviço de reforço na alvenaria por causa do desgaste acarretado pela maresia na estrutura."

Segunda nota:

"Entre os pilares do Programa Recife Acolhe, lançado pela Prefeitura do Recife em 2021, está a expansão dos equipamentos da rede socioassistencial para atender a população em situação de rua. A Secretaria prevê a abertura de um Centro Especializado de Atendimento da População em Situação de Rua (Centro POP) na Zona Sul do Recife com o objetivo de atender às pessoas em situação de rua que vivem nessa parte da cidade. O Centro POP é um equipamento que visa ofertar para aquelas pessoas que usam as ruas como local de sobrevivência e/ou moradia serviços como banho, alimentação, guarda de pertences, além de orientação e encaminhamentos para outros serviços da rede municipal.

Atualmente, Recife conta com dois equipamentos do tipo, que atendem a população em situação de rua que vive no Centro e na Zona Oeste. Os Centros POP ficam na Rua Bernardo Guimarães, nº 135, Santo Amaro, o Centro POP Glória; e na Rua Dr. João Coimbra, nº 66, Madalena, o Centro POP Neuza Gomes. Mensalmente, os equipamentos atendem, juntos, cerca de mil usuários.

Em relação ao edital de prestação de serviço de hospedagem social, a iniciativa que também faz parte do Programa Acolhe Recife possui uma instituição cadastrada, a Pousada Solar do Lazer, que acomoda 60 pessoas em situação de vulnerabilidade social encaminhadas pelos serviços da Assistência Social. As pessoas são levadas para a hospedagem de forma gradativa, a partir de uma seleção de perfil e possibilidade de adaptação. O edital foi relançado e segue aberto para inscrever novos interessados."

TAGS
urbanismo Recife pernambuco
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory