Decadência da Rua do Imperador deixa parte da história do Recife à beira do esquecimento

Imóveis abandonados, dezenas de pessoas em situação de rua e insegurança fazem da rua mais antiga do bairro de Santo Antônio renegar a sua história
Katarina Moraes
Publicado em 14/11/2022 às 8:00
RUA DO IMPERADOR // Situação de abandono da Rua do Imperador, no centro do Recife. Foto: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM


Um passado glorioso, um presente em ruínas e um futuro que tende à desmemória: essa é a direção da história da Rua do Imperador Pedro II, caso não haja uma interferência urgente. Isso porque a rua de cerca de 500 metros, surgida no começo do século 17, sendo a primeira do bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, esconde tesouros que, pouco a pouco, estão sendo engolidos pelo abandono.

“Cuidado com a cabeça. Vive caindo pedra desse prédio”, alertou um senhor que jogava dominó com um grupo de amigos da rua que hoje é evitada por tantos, mas que antigamente era ponto de encontro de amigos em suas largas calçadas. Ele falava de um sobrado que, por trás da degradação, guarda a beleza do estilo holandês.

É um dos três imóveis da rua que foram notificados por mau estado de conservação desde 2019, segundo identificou o JC. Hoje, enquanto estão em meio a processos judiciais, são protegidos por redes para evitar acidentes - mas estes e outros dão o tom da falta de preservação do conjunto arquitetônico que a compõe.



Há 40 anos no mesmo ponto, o taxista Otaviano Freitas, 67, sabe de cor e salteado o uso que cada um dos imóveis teve ao decorrer das últimas décadas. “Ali era uma tapeçaria”, dizia ele, apontando para um edifício amarelo com ladrilhos. “O térreo desse prédio tinha um restaurante, que fechou. Já nesse, aqui, era uma casa de tecidos”, completou.

Otaviano só permanece no local porque é, hoje, prestador de serviço para um banco das proximidades, já que a rua, para ele, “está morta”. “Esse ponto de táxi, antigamente, percorria a rua toda. Foi diminuindo e só sobraram uns cinco. Ficávamos até tarde, umas 19h. Hoje, às 15h vamos embora, porque não tem movimento”.


O que ainda garante certo vai e vem de gente são os órgãos públicos e institucionais que a tem como endereço, como o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Secretaria da Fazenda, a Central de Cadastro Único do governo federal, anexos da Prefeitura do Recife e da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE).

Os ternos dos funcionários dos prédios, entretanto, contrastam com as roupas surradas das dezenas de pessoas que vivem ali em uma situação de vulnerabilidade social agravada nos últimos anos. Faz alguns anos que diversas barracas e pedaços de papelões utilizados como abrigos improvisados foram espalhados pela calçada.

A Praça Dezessete, apesar de estar situada em frente à Igreja do Divino Espírito Santo, não é mais habitada por famílias em seus momentos de lazer, como um dia foi. De dia, silencia. À noite, é abrigo para pessoas em vulnerabilidade social. Seus monumentos são alvos constantes de vandalismo; o que homenageia os aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, por exemplo, teve a placa de cobre furtada.

Um cenário totalmente distinto do qual o imperador Dom Pedro II encontrou durante a visita da família real ao Recife em 1859. Na rua que futuramente o homenagearia, ele exclamou: “Pernambuco é um céu aberto”, em êxtase pela beleza e receptividade que avistava.

Local de marcos na história da cidade

Segundo escritos do historiador Leonardo Dantas Silva, o surgimento da Rua do Imperador entre 1606 e 1613 foi marcado pela construção do Conjunto Franciscano do Recife, agora composto pela Capela Dourada e pela Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).


Quando foi visitada pela reportagem, a Igreja era ocupada, todavia, por menos de meia dúzia de fiéis. Um deles, o arqueólogo Ricardo Barbosa, que lamentou o estado da rua. “Está em degradação. Precisa-se fazer uma conservação e, se não for possível, uma requalificação e encontrar uma função nobre para os prédios. Claro que passamos por dificuldades financeiras, mas não se justifica”, opinou.

A Rua do Imperador foi escolhida como residência do governador do Brasil Holandês em 1637, o Conde João Maurício de Nassau-Siegen, no local onde há, hoje, um imóvel praticamente desocupado, na esquina com a Rua Primeiro de Março.

No telhado da casa de Nassau, surgiu o Primeiro Observatório da América do Sul, pelo astrônomo Jorge Marcgrave, destacado cientista que veio ao Brasil, durante o governo holandês, e desenvolveu inúmeros estudos contemporâneos de Kepler, Galileu e Newton.


Também já foi chamada de "Rua da Cadeia Nova" por ter recebido a cadeia pública onde foi preso o revolucionário Frei Caneca, onde agora funciona o Arquivo Público Estadual. Ainda, de uma das sacadas da Faculdade de Direito, localizada no já demolido Colégio dos Jesuítas, Castro Alves recitou o poema “Improviso”.

Nela, já funcionaram a antiga redação da Rádio Jornal e do JC e o Fórum do Recife, e seguem na ativa atualmente instituições como o Gabinete Português de Leitura. “A rua era tomada por rodas de pessoas conversando, geralmente advogados do Fórum. Mas quando passou para Joana Bezerra, o movimento diminuiu. Agora o gabinete teve que colocar um gradil para não ser invadido”, pontuou Leonardo.

A urgente necessidade de intervenção

O potencial da Rua do Imperador é indiscutível, com capacidade de se tornar parte, efetivamente, de uma rota turística no Recife - e de encontro da própria população. Por estar situada no bairro de Santo Antônio, está inserida no Programa Recentro, lançado há quase um ano pela gestão municipal.

Ele incentiva a reocupação de prédios em estado de degradação por meio de incentivos fiscais, como desconto no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS) e no Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Intervivos (ITBI). Entretanto, não foi suficiente, até então, para trazer uma mudança efetiva para ela e outras vias da região.


Desde 2017, o auditor fiscal Cláudio Couceiro d’Amorim espera por um retorno do projeto elaborado por ele, chamado de “Cidadão Imperador”, que visa reestruturar a rua onde trabalhou por mais de três décadas. “Ninguém se interessou. Tecem elogios, mas não se envolvem”, afirmou.

O projeto prevê escolas para formação de músicos, passista e atores, agências de viagens, salas para exposições, bar, cafés e quiosques. Além disso, escolas e estímulo ao retorno da habitabilidade em imóveis hoje fechados, tudo com o intuito de torná-la “um espaço de convivência social”.

“Hoje é uma rua de carros, onde as pessoas não se veem, nem se falam, e passam com medo. Trabalhamos nela como um projeto piloto, congregando o pessoal de tecnologia, do comércio, de moradia, enfim, para que o Centro do Recife, como um todo, use esses exemplos e ideias para seguir nessa linha”.

O que diz a Prefeitura do Recife

"A Prefeitura do Recife informa que possui olhar especial para a região central da capital, motivo pelo qual foi criado o Gabinete do Centro do Recife, que engloba as áreas dos bairros do Recife, Santo Antônio e São José. A Rua do Imperador faz parte da rota histórico-cultural do Recife e a área tem uma série de projetos, ativações e sinalização sendo estudadas.

A Secretaria de Política Urbana e Licenciamento da Prefeitura do Recife (Sepul) informa que vem desenvolvendo estudos para o Centro (principalmente para o Bairro do Recife e os bairros de São José e Santo Antônio), com o objetivo de estimular moradia, trazendo a população de volta para esses locais. Também está sendo realizado um estudo de circulação de todo esse entorno, dentro do qual a Rua do Imperador é uma importante artéria, com vistas a melhorias no fluxo. A via também é uma área de preservação com edificações emblemáticas da história da cidade, como a Capela Dourada, o Gabinete Português de Leitura e o Arquivo Público de Pernambuco. Por isso, quaisquer iniciativas para o local têm que ser submetidas às instâncias públicas de discussão, como, por exemplo, o Conselho da Cidade (Concidade). Vale ressaltar que todas as propostas para o Centro do Recife estão sendo discutidas com a sociedade e tendo como base o Plano Diretor, aprovado no final de 2020.

A Prefeitura lembra que estão também em andamento os estudos para a primeira Parceria Público-Privada (PPP) do Brasil voltada à Locação Social, com o objetivo de ofertar, no mínimo, 450 unidades habitacionais prioritariamente na área central da cidade, voltadas para famílias com renda máxima de três salários mínimos. A proposta considera a Locação Social como mais uma alternativa de acesso à moradia digna e vê a habitação como um dos elementos estruturadores da requalificação urbana do Centro.

A Secretaria Executiva da Assistência Social informa que equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (SEAS) acompanham, de forma contínua, a população em situação de rua que utiliza a Rua do Imperador como local de sobrevivência. É importante ressaltar que o perfil da população dessa localidade é heterogêneo, e que parte das pessoas que são atendidas pela assistência social deixa claro que permanece com a vinculação comunitária preservada, sendo apenas uma parte das pessoas que está, de fato, em situação de rua.

O trabalho do SEAS também é feito em conjunto com equipes do Consultório na Rua da Secretaria de Saúde do Recife e do Programa Atitude, do Governo do Estado. O SEAS realiza a busca ativa para identificar a incidência de pessoas em situação de rua, trabalho infantil e exploração sexual de crianças e adolescentes. Além disso, o trabalho consiste na tentativa de reintegração com a família, atuando através da sensibilização e orientação, visando o resgate da cidadania das pessoas que vivem em vulnerabilidade nas ruas. As investidas de sensibilização para que estas pessoas possam acessar a rede de abrigo são permanentes, mas a equipe ainda se depara com a dificuldade de adesão aos processos construídos.

A Prefeitura do Recife reforça que não realiza a retirada compulsória das pessoas em vulnerabilidade que utilizam os espaços públicos da cidade como local de moradia ou sobrevivência. Os profissionais que compõem a rede socioassistencial buscam realizar escutas, acompanhar, criar vínculos e, então, ofertar acolhimento, apoio e auxílio. Quando há aceitação, as equipes fazem encaminhamentos para uma das casas de acolhimento municipais e/ou encaminham para retirada de documentos, acesso à rede de saúde, inclusão em programas e benefícios sociais."

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