Desde que os brasileiros voltaram a escolher seus representantes políticos de maneira direta, em 1989, após a redemocratização, todos os presidentes eleitos no País foram alvos de pedidos de impeachment. De lá para cá, o instrumento jurídico foi efetivamente utilizado duas vezes, nos governos de Fernando Collor (PROS) e Dilma Rousseff (PT), mas em meio às dificuldades da gestão Jair Bolsonaro (sem partido) de dar respostas à população com relação ao enfrentamento da pandemia de covid-19, a deposição do militar da reserva tem sido cada dia mais evocada por vários setores da sociedade e partidos de esquerda.
Segundo dados da Câmara dos Deputados, a ex-presidente Dilma Rousseff foi a chefe do Executivo nacional que recebeu mais pedidos de impeachment até hoje: 65. Bolsonaro vem logo em seguida, com 62 solicitações de impedimento até a última sexta-feira (22). Nos seus dois mandatos, Lula (PT) teve 34 pedidos e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), 24. Itamar Franco e Michel Temer (MDB) estão empatados com quatro pedidos, cada.
"Infelizmente, no Brasil, o impeachment tem sido usado como uma alternativa para quando não se concorda ou não se gosta de um presidente da República, quando na verdade ele é uma maneira de se tirar do poder um presidente que não está cumprindo a Constituição. Eu atribuo isso à fragilidade do nosso sistema político e partidário. Temos dezenas de partidos políticos, cada um com a sua ideologia e ao mesmo tempo praticamente sem ideologia nenhuma. Tudo isso gera essa quantidade imensa de pedidos de impeachment, que têm muito mais relação com os interesses políticos desses partidos do que com os interesses nacionais", observa o professor de direito constitucional Julio Hidalgo.
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De acordo com a Constituição Federal, para que o processo de impeachment contra um presidente seja considerado legítimo, é necessário que o seu alvo tenha cometido crime de responsabilidade, como atos que atentem contra a própria Carta Magna. Mas não é apenas isso. Como o presidente da Câmara dos Deputados tem que aceitar o pedido para que ele seja apreciado pelo restante da Casa, é preciso que haja também ambiente político para que o processo saia do papel.
Na visão do cientista político Rodrigo Prando, da Faculdade Presbiteriana Mackenzie, é justamente o retrato político que se desenhou em cada governo o que explica os motivos pelos quais os presidentes Collor e Dilma chegaram a ser efetivamente processados e os demais, não. "Nós vivemos em um sistema presidencialista e republicano, ou seja, o presidente é eleito, mas não governa sozinho, ele precisa estabelecer um diálogo com o Legislativo. Se não montar uma coalizão, não consegue governar. Mas por que os pedidos de impeachment contra Fernando Henrique e Lula, por exemplo, não prosperaram? Porque ambos tinham habilidade política, um conjunto de partidos que dava sustentação ao governo e trânsito no Congresso. Collor e Dilma, por sua vez, sempre tiveram certa arrogância em desprezar a política e o diálogo", pontua.
Mas esse gosto pelo afastamento de presidentes não ocorre apenas entre a classe política. Nas duas vezes em que o Brasil viveu impeachments, era grande também o clamor popular pela deposição dos líderes. Nas últimas semanas, inclusive, tem crescido, sobretudo nas redes sociais, a pressão para que o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), aceite um dos pedidos de impedimento contra o presidente Bolsonaro que já foram protocolados na Casa. Um perfil no Twitter intitulado "Placar do Impeachment", por exemplo, tem cobrado o posicionamento de parlamentares sobre o tema, publicando periodicamente quais deles já se colocaram contra ou a favor do afastamento do capitão do Exército.
Prestes a deixar a presidência da Câmara, Maia voltou a afirmar na última segunda-feira (18) que não tem a intenção de acatar nenhum pedido de impeachment contra o presidente. "Neste momento, acho que com tantas vidas perdidas pelo Brasil e com o caso dramático de Manaus, esse tem que ser o nosso foco", declarou o democrata, referindo-se às recentes mortes de pacientes na capital do Amazonas por falta de oxigênio.
Professor da PUC-Rio, o cientista político Ricardo Ismael tem uma linha de pensamento semelhante à de Maia. De acordo com o docente, neste momento os olhos do País devem estar todos voltados ao enfrentamento das consequências da pandemia, sejam elas econômicas, sanitárias ou sociais. “No meu modo de ver, o principal objetivo da população não é o impeachment do presidente. Claro que há uma parte do eleitorado que não votou nele em 2018 que quer que ele deixe o poder, mas eu creio que a população, em sua imensa maioria, quer tentar resolver o problema da pandemia. O que se quer são leitos nos hospitais públicos, uma campanha nacional de vacinação, uma coordenação e engajamento que envolva o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde. Me parece, portanto, que não seria o caso de iniciar um processo de impeachment agora, porque o foco do País seria alterado completamente, tornando muito mais complicado o enfrentamento da covid-19”, argumenta.
Em recente entrevista à Folha de S. Paulo, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto afirmou que o “conjunto da obra” do presidente Bolsonaro nos últimos meses “sinaliza para o cometimento de crime de responsabilidade” o que, portanto, justificaria a abertura de um processo de impeachment contra ele. "Ele (Bolsonaro) promove aglomerações, não tem usado máscara, não faz distanciamento social. Respostas como 'e daí?' ou 'não sou coveiro' não sinalizam um caminhar na contramão da Constituição?", questionou Ayres Britto.
Para Rodrigo Prando, o fato de Bolsonaro ter se aproximado do Centrão em 2020 e a própria pandemia têm impedido o avanço de um processo contra ele no Congresso. “Me parece que o presidente cometeu vários crimes de responsabilidade, então por que o impeachment não anda? Porque para além da questão jurídica, há a questão política. Ele está governando em um cenário de pandemia, e a mesma pandemia que o desgasta, o protege, pois as pessoas não estão indo às ruas, não houve grandes manifestações. Ele sabe, também, que se tiver o Centrão do lado dele pode segurar essa situação. A grande questão é que o Centrão não é tão fiel. A presidente Dilma, por exemplo, até tentou acenar para eles quando a situação estava crítica, mas acabou ficando na mão”, detalha.