RELIGIÃO

Campanha da Fraternidade 2021 é atacada por grupos católicos conservadores; entenda a polêmica

Texto-base da campanha condena violência contra minorias e pede diálogo para combater polarização

Cadastrado por

Amanda Rainheri

Publicado em 15/02/2021 às 17:06 | Atualizado em 15/02/2021 às 19:49
Campanha da Fraternidade tem cunho ecumênico em 2021 - Divulgação

A Campanha da Fraternidade 2021, que inicia nesta quarta-feira (17), ainda nem começou, mas já alvo de polêmica envolvendo grupos católicos conservadores. Eles têm se mobilizado para boicotar a campanha que, neste ano, tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”. Os grupos questionam o posicionamento de defesa de grupos minoritários, como o LGBTQI+.

>> Campanha da Fraternidade 2021 tem como tema "Fraternidade e diálogo"

Com um tema diferente a cada ano, a Campanha da Fraternidade tem como objetivo levar os católicos a fazerem reflexões sobre diferentes temáticas que afetam a sociedade, como políticas públicas, meio ambiente e família. A cada cinco anos, porém, ela toma proporções maiores, porque se torna de cunho ecumênico, envolvendo outras igrejas cristãs. Em 2021, a Campanha da Fraternidade é ecumênica e tem como lema "Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”( Ef 2,14). A proposta é dialogar sobre polarizações e violências vividas por minorias.

O cardeal Odilo Pedro Scherer, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), explicou que normalmente a preparação é conduzida pelo Conselho Episcopal Pastoral da CNBB, mas na Campanha Ecumênica, ele passa a ser conduzido pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). “A Campanha deste ano é promovida de forma ecumênica e o texto-base não foi preparado pela CNBB. Foi preparado pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), do qual também faz parte a Igreja Católica no Brasil. Ele dá a reflexão básica sobre o tema”, destacou.

O texto-base é alvo de críticas nas redes sociais. Ele defende a importância do diálogo frente às polarizações e ressalta que algumas populações, como aquela formada por mulheres negras e indígenas, são as maiores vítimas da violência. O texto ainda diz que "outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada e da criação de inimigos é a população LGBTQI+". Esse último trecho é o principal motivo das campanhas que pedem o boicote da Campanha da Fraternidade. 

Entre críticas e ataques nas redes sociais, conservadores e fundamentalistas pedem que os fieis não doem dinheiro para as igrejas. 

O Instituto Santo Atanásio, que difunde a cultura cristã no País, se manifestou sobre o assunto e disse que a "Conferência Nacional dos Bispos do Brasil está de mãos dadas com toda a agenda revolucionária globalista e os projetos da extrema-esquerda que anseiam por instaurar no Brasil um regime liberal-socialista, partidário de um “progressismo” totalitário e da demoníaca cultura da morte." O texto da associação ainda questiona se os fiéis querem contribuir financeiramente com a campanha que "parece ter sido planejada nos laboratórios do inferno."

Dom Odilo acredita que a polêmica nas redes sociais em relação ao texto-base “precisa baixar um pouco a fervura”. Tal mobilização, segundo o cardeal, “está movida por um monte de preconceitos, é antiecumênica, está movida por paixão antiecumênica, por outro lado, movida por acusações infundadas contra a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil”.

É uma polêmica marcada por polarização ideológica, segundo dom Odilo: “Acusa de ideologia de um lado, mas comete o mesmo erro, de posição ideológica oposta, dura, fechada. Tudo o que não precisa numa Campanha da Fraternidade Ecumênica, quando o objetivo é realmente aproximar as Igrejas, é promover uma iniciativa boa, juntos, nos aproximar mais”.

A CNBB se pronunciou através de nota, salientando que o Conic foi responsável pela elaboração do texto em seu formato ecumênico. “Não se trata, portanto, de um texto ao estilo do que ocorreria caso fosse preparado apenas pela comissão da CNBB”, aponta o comunicado.

No documento, a presidência da CNBB reafirma que a Igreja Católica tem sua doutrina estabelecida a respeito das questões de gênero e se mantém fiel a ela. “A doutrina católica sobre as questões de gênero afirma que ‘gênero é a dimensão transcendente da sexualidade humana, compatível com todos os níveis da pessoa humana, entre os quais o corpo, a mente, o espírito, a alma. O gênero é, portanto, maleável sujeito a influências internas e externas à pessoa humana, mas deve obedecer a ordem natural já predisposta pelo corpo.”

A nota informa que os recursos do Fundo Nacional de Solidariedade (FNS) seguem rigorosa orientação, obedecendo não apenas a legislação civil vigente para o assunto, mas também a preocupação quanto à identidade dos projetos atendidos. “Os recursos só serão aplicados em situações que não agridam os princípios defendidos pela Igreja Católica."

Veja a nota na íntegra:

Irmãos e irmãs em Cristo Jesus,

“Não apagueis o Espírito, não desprezais as profecias,
mas examinai tudo e guardai o que for bom” (1 Ts 5,21)

1. No exercício de nossa missão evangelizadora, deparamo-nos com inúmeros desafios, diante dos quais não podemos esmorecer, mas, ao contrário, buscar forças para responder com tranquilidade e esperança.
2. Nosso país vive um tempo entristecedor, com tantas mortes causadas pela covid-19, um processo de vacinação que gostaríamos fosse mais rápido e uma população que se cansou de seguir as medidas de proteção sanitária. Nosso coração de pastores sofre diante de tantas sequelas que surgem a partir da pandemia, em especial o empobrecimento e a fome.

A Campanha da Fraternidade 2021 e suas características
3. Em meio a tudo isso e atendendo à solicitação de irmãos bispos, desejamos abordar a Campanha da Fraternidade deste ano. Algumas afirmações têm ocasionado insegurança e mesmo perplexidade.
4. Como sabemos, a Campanha da Fraternidade é uma riqueza da Igreja no Brasil, nascida e amadurecida não sem dificuldades e mesmo sofrimentos. A cada Campanha, o aprendizado se fortalece e se mostra continuamente necessário. Assim acontece com cada tema escolhido e assim acontece quando as Campanhas, desde o ano 2000, são feitas em modo ecumênico.
5. Para este ano, o tema escolhido foi o diálogo, com o tema, portanto, fraternidade e diálogo: compromisso de amor. Trata-se, como explicado nas formações feitas pelo nosso Setor de Campanhas, do recolhimento dos temas anteriores, em especial desde 2018, que tratou da superação da violência, até 2020, quando apresentou-se a proposta cristã do cuidado.
6. Para 2021, conforme aprovação em nossa Assembleia Geral de 2018, a Campanha foi construída ecumenicamente e, conforme costume desde o ano 2000, sob a responsabilidade do CONIC. Nas primeiras reuniões, discerniu-se pelo tema do diálogo, urgência num tempo de polarizações e fanatismos, cabendo então ao CONIC a construção do texto-base. Isso foi feito conforme está explicado na apresentação do mesmo, com detalhamento da equipe elaboradora, na pág. 9.
7. Consequentemente, o texto seguiu a estrutura de pensamento e trabalho do CONIC. Foram realizadas várias reuniões, o texto passou por revisão da assessoria teológica do CONIC, uma assessoria com membros das diversas igrejas, chegando, então, ao que hoje temos. Não se trata, portanto, de um texto ao estilo do que ocorreria caso fosse preparado pela comissão da CNBB, pois são duas compreensões distintas, ainda que em torno do mesmo ideal de servir a Jesus Cristo. O texto-base desse ano, por conseguinte, deve ser assim compreendido, como o foi nas Campanhas da Fraternidade levadas a efeito de modo ecumênico.

Algumas questões específicas
8. Nos últimos dias, reações têm surgido quanto ao texto. Apresentam argumentos que esquecem da origem do texto, desejando, por exemplo, de uma linguagem predominantemente católica. Trazem ainda preocupações com relação a aspectos específicos, a saber, as questões de gênero, conforme os números 67 e 68 do referido texto.
9. A doutrina católica sobre as questões de gênero afirma que “gênero é a dimensão transcendente da sexualidade humana, compatível com todos os níveis da pessoa humana, entre os quais o corpo, a mente, o espírito, a alma. O gênero é, portanto, maleável sujeito a influências internas e externas à pessoa humana, mas deve obedecer a ordem natural já predisposta pelo corpo” (Pontifício Conselho para a Família, Lexicon – Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas., pág. 673).

Uma ajuda destacável
10. Já pronto o texto-base, fomos presenteados com a Fratelli Tutti, que recomendamos vivamente seja também utilizada como subsídio para a Campanha da Fraternidade deste ano. Ela estabelece forte conexão entre o tema de 2020 e o de 2021, cuidado e diálogo, e muito ajudará na reflexão sobre o diálogo e a fraternidade.

Coleta da Solidariedade
11. Junto com essas preocupações de conteúdo, surgiu ainda a sugestão de que não se faça a oferta da solidariedade no Domingo de Ramos, uma vez que existiria o risco de aplicação dos recursos em causas que não estariam ligadas à doutrina católica.
12. Lembramos que, em 2019, foi distribuída pelo Fundo Nacional de Solidariedade – FNS a quantia de R$3.814.139,81, fruto da generosidade de nossas comunidades, não se incluindo nessa quantia o que foi destinado aos fundos diocesanos. Em 2020, por causa da pandemia, não ocorreu arrecadação. Somente com a ajuda da instituição alemã Adveniat conseguimos atender a 15 projetos.
13. Sobre isso, recordamos que o FNS segue rigorosa orientação, obedecendo não apenas a legislação civil vigente para o assunto, mas também preocupação quanto à identidade dos projetos atendidos. Desde o início da construção da Campanha da Fraternidade de 2021, temos informado ao CONIC a respeito da dificuldade e até mesmo da impossibilidade de mantermos a estrutura do Fundo de Solidariedade como ocorrido nas Campanhas ecumênicas anteriores. Sobre este ponto, tendo como base a última dessas Campanhas, a de 2016, esta Presidência já manifestou ao CONIC as dificuldades e, por espírito de comunhão e corresponsabilidade, vai conversar sobre o assunto na próxima reunião do CONSEP. A conclusão será informada em seguida.

Desse modo:
14. Em consequência, respeitando a autonomia de cada irmão bispo junto aos seus diocesanos e como não poucos irmãos nos têm solicitado indicações para informar ao povo sobre a CF 2021, consideramos importante que sejam destacados os seguintes aspectos:

A Campanha da Fraternidade é um valor que não podemos descartar.
Alguns temas, conforme seu modo de ser apresentado, tornam-se mais difíceis que outros.
A Igreja tem sua doutrina estabelecida a respeito das questões de gênero e se mantém fiel a ela.
Os recursos do Fundo Nacional de Solidariedade serão aplicados em situações que não agridam os princípios defendidos pela Igreja Católica.
A causa ecumênica se mantém importante. “Uma comunidade cristã que crê em Cristo e deseja com o ardor do Evangelho a salvação da humanidade não pode de forma alguma fechar-se ao apelo do Espírito que orienta todos os cristãos para a unidade plena e visível … O ecumenismo não é apenas uma questão interna das comunidades cristãs, mas diz respeito ao amor que Deus, em Cristo Jesus, destina ao conjunto da humanidade; e criar obstáculos a este amor é uma ofensa a Ele e ao Seu desígnio de reunir todos em Cristo” (S. João Paulo II, Encíclica Ut Unum Sint, 99)
15. Concluímos lembrando a importância da Campanha da Fraternidade na história da evangelização do Brasil. É nossa marca. Cabe-nos cuidar dela, melhorá-la sempre mais por meio do diálogo, assim como nos cabe cuidar da causa ecumênica, um ideal que se nos impõe. Se nem sempre é fácil cuidar de ambos e de muitos outros aspectos de nossa ação evangelizadora, nem por isso devemos desanimar e romper a comunhão, uma de nossas maiores marcas, um tesouro que o Senhor Jesus nos deixou e do qual não podemos abrir mão. Não desanimemos. Não desistamos. Unamo-nos.

Brasília-DF, 09 de fevereiro de 2021

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