Como aponta Luis Reis, dramaturgo e professor do curso de Teatro da UFPE, o fato de João Cabral ter identificado Morte e Vida Severina como um auto, assim como Auto do Frade (1984), inspirado em Frei Caneca, mostra que o escritor tinha intenção de que os poemas ganhassem os palcos, ainda que não escrevesse seguindo as diretrizes do gênero dramatúrgico.
“Nenhuma das duas obras tem marcas clássicas do teatro, como descrição de cenário, por exemplo. Mas, o ritmo da leitura induz a uma representação e o próprio fato de chamarem-se autos é muito simbólico, já que se trata de um gênero renascentista ibérico que foi reinventado no teatro moderno nordestino. O auto vira quase uma obsessão dos dramaturgos daqui, como Ariano Suassuna, Osman Lins e Hermilo Borba Filho. Para mim, a identificação com o auto naquele momento vinha da busca pela liberdade cênica e poética do teatro medieval, que não tinha compromisso com a verossimilhança. O auto, no final da Idade média, era político, criticava a sociedade e acho que isso interessava muito a João Cabral”, explica. “Como dramaturgo, acho que esses poemas têm alguns dos versos mais lindos que um ator pode dizer. A poética e a métrica de João Cabral lembram Shakespeare. Você lê na mesa de ensaio e parece que tudo pega fogo.”
Luis ressalta ainda que a maior parte das encenações baseadas em Morte e Vida Severina ainda tem como referencial estético a montagem do TUCA. Uma exceção foi a pernambucana Autos Cabralinos, dirigida por Antonio Cadengue, em 1996. Com sua Companhia de Teatro Seraphim, Cadengue uniu os dois autos em uma obra que ousou nas escolhas estéticas, como nos figurinos em tom cinza, que lembravam os usados pelos prisioneiros de campos de concentração durante o nazismo, e canções lúgubres em alemão, sugerindo que a situação dos sertanejos pobres se assemelhava a uma espécie de Holocausto. Este ano, Morte e Vida Severina ganhará uma novo olhar, desta vez do Grupo Magiluth. O coletivo está em processo de criação de um espetáculo de rua com direção de Rodrigo Mercadante, da Cia do Tijolo (SP).
No artigo Quando João Cabral de Melo Neto nos Chama Para Dançar, a pesquisadora Bárbara Campos Silva analisa a representação da dança na obra do escritor a partir dos poemas A Bailarina e Estudos para uma Bailadora Andaluza. Para ela, “A linguagem utilizada pelo poeta proporciona ao leitor a apreciação da arte da dança por meio da mistura dos sentidos, e permite que esse mesmo leitor se torne um espectador da manifestação artística da bailarina”.
Não por acaso, o universo da dança e da performance esboçou aproximações com João Cabral. Fascinada pela obra do pernambucano, a coreógrafa Deborah Colker mergulhou no universo cabralino em 2016 para criar o espetáculo O Cão Sem Plumas, baseado no poema homônimo. Com sua equipe, passou um mês em Pernambuco e seguiu o curso do Rio Capibaribe, da nascente ao Recife. Na culminância, apresentaram uma coreografia marcante, com os bailarinos melados de lama, evocando o mangue, sobre uma balsa que atravessou do Parque das Esculturas até o Marco Zero. O espetáculo estreou um ano depois no Teatro Guararapes e desde então cumpriu uma trajetória vitoriosa, ganhando, entre outros, a principal categoria do prêmio russo Benois de la Danse.
Em entrevista à TV JC, em 2018, Deborah afirmou que seu encanto com a obra do pernambucano se renovava sempre e a força da poética dele estava no fato dele ser “o Nordeste, o Brasil, é o mundo. É universal, atemporal”.