O Brasil ainda viva sob o espectro da ditadura militar, em 1978, quando foi sancionada a lei para a construção do Porto de Suape, no Litoral Sul de Pernambuco. À época, quando questões ecológicas já começavam a entrar, ainda que timidamente na pauta da sociedade, integrantes da sociedade civil se organizaram em diversos protestos contra a obra, a fim de preservar a natureza e a dinâmica social – especialmente os moradores – da região. Entre os que se opuseram ao empreendimento estava Cláudio Assis, então estudante. Agora, com Piedade, seu novo longa estrelado por Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele, Cauã Reymond e Gabriel Leone, o cineasta volta suas lentes para a região a fim de retratar uma história que, como na maioria dos seus filmes, funciona como uma metonímia de aspectos controversos da sociedade brasileira.
Em seu novo longa, Cláudio Assis toma como ponto de partida a dicotomia entre os interesses de um capitalismo sem qualquer preocupação social em oposição às vivências dos moradores de uma região e à natureza. Na obra, um executivo paulista, vivido por Nachtergaele, chega a uma praia do Litoral Sul de Pernambuco, a mando de uma empresa petrolífera. Sua missão é remover os moradores da área, a fim de garantir a exploração dos recursos naturais.
“O título do filme fala justamente da falta de piedade. É sobre o inevitável caminhar o capital versus a derrocada cada vez maior daquilo que nos era mais caro, precioso, e vive nas pequenas relações, nos pequenos negócios, nos negócios de família gerenciados há gerações. Aquelas pessoas não são miseráveis. Elas estão bem. E é aí que surge o problema para o meu personagem, que tem que removê-las a todo custo”, refletiu Nachtergaele, que vê no personagem um desafio na sua carreira, já que não costuma ser chamado para papéis mais “aburguesados”.
Para concretizar sua tarefa, ele precisará enfrentar a família da personagem de Fernanda Montenegro, que mantém um pequeno bar no local.
O filme fala sobre ecologia, exploração, sobre a vida. Quando era estudante, participei e fiz passeata contra o Porto de Suape, porque, naquela época, a gente já sabia do desastre ecológico que ia acontecer. E aconteceu. Foi o Porto de Suape que fez com que o tubarão pegue o povo em Boa Viagem. Já me disseram que esse era o primeiro filme no qual o tubarão não era o vilão e sim a vítima”, pontuou Cláudio, em conversa com o JC durante a filmagem de cenas do núcleo do personagem de Matheus, na Reserva do Paiva.
O diretor reforçou ainda que grande parte da potência do filme é justamente sua ligação com a realidade. A Ilha de Tatuoca, em Suape, por exemplo, fonte de uma longa disputa do poder financeiro com os moradores que a habitam há gerações, é o cenário da residência e do bar da família da matriarca vivida por Montenegro. Lá, reside ainda Seu Biu, último morador a resistir à expulsão dos nativos, que se foram por falta de infraestrutura e/ou pela pressão do das grandes empresas.
“Da casa [DA PERSONAGEM]]de Fernanda, que mora com o neto [vivido por Francisco, filho do diretor], ela olha para aqueles guindastes, gafanhotos de ferro, expulsando todo mundo. É uma coisa medonha, um câncer. O último morador de Tatuoca [conhecido como Seu Biu] teve um AVC recentemente. O personagem de Irandhir tem a ver com esse cara. Então, quando a gente foi ver o que tinha sido escrito por Hilton Lacerda, Anna Francisco [e Dillner Gomes[ e está tudo ali. Aquele cara existe”, enfatizou.
Questionado se Piedade, cujas filmagens continuam até o fim do mês, era, em essência, um filme de resistência, Assis afirmou que sim e que se tratava, também, de uma obra de denúncia. “No momento em que estamos vivendo, quando vou poder fazer outro filme desse? Então, acho que tenho que aproveitar para dar minha contribuição social. Só acredito em cinema que faz pensar”