Em 1942, o público dos cinemas recifenses pôde se maravilhar com a história de uma jovem moça, saudosa dos carnavais pernambucanos, em uma aventura musical, identificando os principais pontos da cidade em uma narrativa bem localizada. Era O Coelho Sai, primeiro filme falado feito no Nordeste brasileiro. A obra, dirigida por Firmo Neto e com produção de Newton Paiva, foi uma verdadeira luta pelo domínio da escassa tecnologia cinematográfica disponível na época. Uma luta bem sucedida, mas impossível de ser vista hoje. Não há absolutamente nenhuma cópia ou fragmento da obra. A memória do nosso primeiro longa-metragem falado não é nada física. E não é a única lacuna.
Para o pesquisador Alexandre Figueirôa, autor de Cinema Pernambucano: Uma História em Ciclos, uma possível visualização de algo como O Coelho Sai poderia lançar uma luz única sobre a produção cinematográfica pernambucana. "Do ponto de vista narrativo e de linguagem, não deve ter grandes coisas, mas é valiosíssimo enquanto documento histórico do nosso cinema, um filmes dos anos 40, com todo processo de som direto e captação sonora é algo único na nossa produção. Um esforço técnico incrível", afirma.
Imagem de O Coelho Sai (1942) |
O Coelho Sai não chega perto de ser uma exceção, é só voltar mais um pouco no tempo, indo ao chamado Ciclo do Recife, por exemplo. Na década de 1920, Recife começava a experimentar a deslumbrante novidade das imagens na telona, que se movimentam no espaço e tempo. Nomes como Ary Severo, Jota Soares, Edson Chagas e Gentil Roiz, oriundos das mais diversas ocupações, da engenharia ao jornalismo, fizeram da capital pernambucana o centro da produção cinematográfica do país. Ao todo, foram nove produtoras funcionando durante o período: Aurora Filme, Planeta Filmes, Iate Filme, Veneza Filme, Liberdade Filme, Olinda Filme, Spia Filme, Goiana Filme e Vera Cruz. De 1923 até 1931, produzindo 13 longas-metragens de ficção.
Entre eles estão Aitaré da Praia (1925) e A Filha do Advogado (1926). O primeiro, dirigido por Gentil Roiz, narra os dramas e intrigas de uma comunidade de jangadeiros nordestinos, tendo sido exibido em sua estreia no Cine Royal, localizado na Rua Nova, bairro de Santo Antônio. Aitaré conseguiu um grande sucesso comercial em suas exibições, chegando a ser comprado e ter uma segunda versão produzida e exibida no Rio de Janeiro.
Já em A Filha do Advogado, de Jota Soares, acompanhamos um drama familiar sobre a filha bastarda de um importante advogado que se muda com sua mãe para o Recife a mando de seu pai. A partir de então, sua vida se entrelaça entre forte paixões e desafetos familiares.
O fato de ambos os filmes serem descritos com maior fidelidade é pela possibilidade de serem revistos por completo. Eles são os dois únicos sobreviventes inteiros do Ciclo do Recife. Os outros 11 contam apenas com fragmentos ou simplesmente não existem.
A constituição material desses longas foram os maiores facilitadores dessa perda, como elucida o pesquisador Paulo Cunha. "Esse período tem uma explicação melhor, pois era um material muito frágil, facilmente inflamável e os filmes eram feitos em cópias únicas, no máximo duas cópias. Era um período em que a preservação era difícil, já que o armazenamento de película exige uma série de especificidades. É uma lástima porque foi o ciclo regional mais poderoso dos anos 20 no Brasil", explica.
Aitaré da Praia (1925) e A Filha do Advogado (1926) |
Após um período de produções esparsas, a chegada de uma nova tecnologia permitiu um novo pico de produção. A película de bitola 8 mm, popularmente conhecida como Super-8, de custo mais acessível, fez nascer uma nova geração de jovens cineastas em Pernambuco. Foram cerca de 250 filmes entre os anos 1970 e 1980, indo da animação aos documentários. O movimento contou com nomes como Geneton Moraes Neto, Fernando Spencer, Paulo Bruscky, Jomard Muniz de Britto e Félix Filho.
Ao se comparar com o Ciclo do Recife, esse período consegue se sair melhor na questão da preservação, mesmo com altos e baixos. A obra de Geneton, por exemplo, está toda preservada, restaurada e digitalizada na Cinemateca Pernambucana, iniciativa da Fundação Joaquim Nabuco em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco, voltada para a preservação da nossa história cinematográfica.
O projeto – que já tem um ano – está se saindo bem no trabalho de recuperar o que se acreditava perdido do ciclo do Super-8. Até dezembro de 2018, por exemplo, Paulo Cunha acreditava que apenas um filme de Jomard estaria bem conservado. Hoje, a Cinemateca conta com 15 obras do diretor em seu acervo. "Jomard me disse que eu posso pegar o que tiver de original dele, ainda voltarei na casa dele para recuperar mais material. Havia filmes digitalizados com ele, mas não estavam na qualidade ideal. Estamos nos planejando para recuperá-los e deixá-los em sua melhor forma", relata Ana Farache, uma das idealizadoras e coordenadora da Cinemateca.
Outras produções precisam de um verdadeiro processo de garimpagem para confirmação de suas existências, além do processo de obtê-las e empreender a digitalização para ter certeza da preservação. Um exemplo recente é Amin Stepple, que teve suas quatro obras super-8 localizadas recentemente e estão no próximas de entrarem no processo de digitalização. A tarefa envolve ligar para as pessoas em busca dos filmes, percorrer caminhos para localizá-los e oferecer a guarda e a preservação.
"Talvez o maior problema seja a dispersão, pois nunca tivemos de fato uma tradição de preservação em Pernambuco. As pessoas foram guardando em casa, ou nas produtoras e eventualmente essas pessoas faleceram e o material se perdeu. Não é exclusividade dos anos do Ciclo do Recife ou do Super-8.", diz Paulo. Para ele, muitos dos problemas vêm de uma vocação dos produtores para uma "preservação passiva", em que as obras são gravadas e trancadas em um armário, no lugar de garantir que o filme esteja sempre vivo, sendo projetado e discutido. "Não tem lugar no mundo em que a cena tenha sustentabilidade sem a perna da preservação. Não só do filme, mas dos roteiros, figurinos, cartazes, itens de produção", elucida.
Conteúdo Zero, um filme para desentendidos, de Geneton Moraes Neto |
Do momento da chamada "Retomada", marcado pelo lançamento do longa Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, em 1996, para cá, as dificuldades diminuíram ainda mais com as cópias digitais. Entretanto, esse formato pode passar a ilusão de precisar de cuidados menores do que em películas."É justamente o contrário, um filme em película, em condições razoáveis, perdura 200 anos. O digital, mesmo em um HD muito bom, corre altos riscos de ser corrompido", diz Paulo Cunha.
O veterano produtor João Vieira Jr., fundador de projetos como a REC Produtores Associados e, atualmente, com a Carnaval Filmes, explica que as produtoras nacionais que recebem incentivos federais para realizar cinema são obrigadas a fazer doação em película 35 mm ou em formato digital de alta definição para a Cinemateca Brasileira. "Independente dessa obrigação, acredito que seja altamente recomendável fazer esse depósito, porque nesses espaços há todos os requisitos e normas técnicas de armazenamento, para a preservação da própria cultura", elabora João.
Segundo ele, um dos maiores desafios por parte das produtoras na conservação das obras é a transição da película para os suportes digitais, o que pode ter gerado uma confusão no próprio conhecimento de como efetuar a preservação. Os mecanismos de obtenção de cópias, com o uso de negativos preservados, apresentam sensíveis diferenças do processo digital e podem fazer surgir dúvidas. Ele cita, por exemplo, a fita LTO, um mecanismo de armazenamento magnético preferível aos tradicionais HDs. Muitos produtores precisaram aprender o que era e qual era sua efetividade.
Para armazenar as cópias digitais, a Cinemateca Pernambucana conta com um servidores de 64 terabytes, mantidos em uma sala climatizada durante 24 horas, onde 520 cópias digitais são mantidas. Para potencializar a segurança, essas cópias ainda ganham backups em fitas LTO de alta qualidade, mantidas fora da Cinemateca.
Os rolos de película e fitas VHS são mantidos em armários especiais, em uma estrutura igualmente climatizada, que conta com desumidificadores de ar. "Se o mundo se acabasse, iam saber o que é o cinema pernambucano com o que temos nas fitas e nos servidores", brinca Farache
"Preservar é como guardar pequenas joias para outras gerações. É encontrar verdadeiros tesouros e ajudar a entender melhor que sociedade nós somos, uma noção da história da nossa produção cultural. Pernambuco deu um passo adiante em ter uma Cinemateca com boas condições técnicas. É importante que cada produtora entenda a importância da preservação e como conduzi-la dentro dos recursos que dispõe", conclui João.
Estruturas de armazenamento da Cinemateca Pernambucana |