Atlantique (Atlantics), primeiro longa de Mati Diop, premiado com o Grand Prix no Festival de Cannes deste ano, estreia diretamente no catálogo da Netflix. Mais do que dinâmicas de autorismo, compreender o cinema da diretora passa também por entender o legado do seu tio, o lendário cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty. O que talvez não passe por uma relação cinematográfica direta; a obra de Mati Diop parece mais interessada no drama do que na etnografia do espaço. Mille Soleils (2013), seu mais célebre documentário, consiste em, por exemplo, explorar todas as brechas dramáticas da obra-prima de Mambety, Touki Bouki (1972).
O média-metragem é uma espécie de mescla entre a ficção que se desenvolve no primeiro filme e uma abordagem documental que acompanha Magaye Niang, o ator principal do clássico de 72. As significações políticas de Touki Bouki (uma grande alegoria do Senegal pós-colonial) se transfiguram na mais simples potência do drama: o peso do tempo e da ausência, que se arrastam da cena final do longa original até adentrar a vida real – como um fato a ser documentado por Diop.
Essa relação não surge, aliás, de uma espessura temática, mas de uma certa forma estrutural. Atlantique é um filme de ficção, e pouco do seu fazer cinema alude a Mambety ou à etnografia (no que o filme parece pouco interessado). O nome do senegalês talvez apareça tanto pela força com que circunda o que é filmado em Dakar e no Senegal em geral.
É a partir de toda essa potência alegórica que Diop (nascida na França) constrói todo o seu drama. Atlantique é, sobretudo, um romance de amores interrompidos, de ausência; e por se situar no Senegal, também de vidas interrompidas, capitalismo e imigração.
Nos primeiros minutos acompanhamos Souleimane, o motor-dramático de tudo que transcorre em tela. O personagem é um jovem pedreiro que está trabalhando na construção de um prédio no subúrbio de Dakar. Sem receber do patrão seu pagamento há um longo tempo, decide se lançar ao mar junto aos seus companheiros rumo à Espanha.
A imagem do mar, sempre à espreita, acalora nosso primeiro encontro com Ada, personagem principal do longa, como também alerta para o legado de Touki Bouki, que a sua imensidão continua a representar uma escapatória para os jovens senegaleses.
O que está em foco aqui, no entanto, é o drama: o peso da ausência que atormenta Ada, que vê sua grande paixão rumar para o incerto. Atlantique caminha por essa superfície – a ficção que alude ao subtexto político menos direto possível.
Cada base dramática é bem construída dentro dos seus preceitos antes de qualquer coisa. Afinal, o longa também está interessado em ser um filme narrativo, inclusive, com camadas. Do romance de ausência, todo clima que circunda, não só o filme, mas Dakar, se torna gradualmente fúnebre, enigmático e sombrio. Surge um suspense de dúvidas, de espectros e fantasmas.
O que às vezes se torna conflitante: a direção de Mati Diop, que tem uma prolífica carreira como atriz, não sustenta o tom. O excesso de literatura (diálogos, explicações) sugam por vezes a força de planos mais contemplativos e inventivos que vão surgindo.
A trama se segura na sua consistência dramática, sempre carregada de subtextos abertos a coceiras reflexivas. “E se?” se torna um questionamento nulo e ineficaz. A partida de Souleiman é uma necessidade de sobrevivência, tal como para Ada é a sua permanência. Talvez a imaterialiedade desse sentimento seja mais relevante do tudo que o filme transforma em imagem.
Uma impotência e contradição entre sentimentos e política, afinal. O cinema de Diop parece compreender isso perfeitamente – até por isso Atlantique nunca procura “ser sobre” uma única coisa.