A cerimônia do Oscar 2020, realizada no domingo (09) em Los Angeles, serviu para atestar algo que o grande público ainda desconhecia: Bong Joon-ho é um dos principais cineastas deste século.
Uma relação que não se restringe a datas, ressalte-se. O sul-coreano é daqueles diretores que parecem nunca estagnar – tanto em produção como qualidade. Dos anos 2000 para cá, foram sete longa-metragens que conseguiram captar dilemas, anseios e tensionamentos de cada momento específico dessas duas décadas.
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Na virada do século aventurou-se no seu primeiro longa, Cão que Ladra não Morde (2000) – o que podemos chamar de o embrião para Parasita. A sátira de um cotidiano proposto dentro de uma ficção distante e, ao mesmo tempo, próxima a nossa realidade, já anunciava uma marca autoral que só viria a se aprimorar.
As “críticas” e todo escopo social dos seus roteiros (todos assinados por ele) nunca foram gratuitos ou panfletários. Bong, um cinéfilo apaixonado, sempre entregou obras que são, por si só, declarações de amor a sétima arte; cheia de referências a grandes mestres e brincadeiras com gêneros cinematográficos.
É através deles que o cineasta concebe todo universo dos seus filmes. Cria suspense, flerta com o terror, atiça a ficção científica – oferecendo um pouco de cada, mas todos ao mesmo tempo. Construindo e desconstruindo convenções do público e da crítica.
Isso porque, como o mesmo gosta de ressaltar, seus trabalhos buscam o entretenimento, sempre prendendo a atenção da plateia para as resoluções das suas tramas. O que, de cara, já borra os limites do que se convencionou diferenciar por aqui como “filme de arte” e “blockbuster”.
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Essa característica levou, inclusive, Quentin Tarantino, seu “rival” no Oscar erroneamente eleito pela internet, o comparar ao lendário Steven Spielberg “da década de 70”. Tarantino, que é um amante da obra do sul-coreano, elegeu dois dos seus filmes como obras-primas do cinema.
O elogio parte de um lugar não tão distante – apesar da disposição geográfica dos dois. Artisticamente, ambos compartilham de um gosto comum por narrativas, à princípio, consideradas de gênero. Cão que Ladra Não Morde é, por exemplo, uma espécie de filme de suspense um pouco mais bem-humorado que Parasita.
Seu segundo trabalho, Memórias de um Assassino (2003), desde o título já propõe um universo completamente diferente do seu antecessor. O longa é uma espécie de investigação policial, que se passa durante a ditadura militar na Coreia do Sul, acompanhando um detetive a procura de um assassino em série.
O filme marcava o início da parceira de Bong com o seu astro Song Kang-ho – o pai-motorista em Parasita –, que três anos depois voltava de novo a desempenhar um papel importante num seio familiar.
Do suspense bem-humorado para o drama de investigação, o cineasta concebeu talvez a sua principal obra até agora, O Hospedeiro (Disponível na Netflix) – algo próximo dos blockbusters de ficção científica.
O filme acompanha uma família desmembrada que vive na beira do rio Han. Moram dentro uma apertada barraca de comida, o idoso Hie-bong, seu filho desequilibrado Kang-du e sua pequena filha Hyun-seo. Além deles, mais dois membros a distância: a filha do meio, uma arqueira olímpica, e o mais velho, um executivo desempregado.
De início, o sul-coreano nos propõe um universo que beira o surreal (tanto pelos diálogos como na forma que os personagens vivem) – o que certamente levará muitos a lembrar dos primeiros minutos de Parasita. A quebra vem quando um monstro gigante sai do rio perturbando a paz de todos ao levar consigo a pequena Hyun-seo.
A partir daí o que se desenrola é genialidade. O cineasta transita entre tons e clichês de gênero, alegorias sociais e, principalmente, geopolíticas. Da ação, a comédia, para a ficção científica, o terror e o suspense; no liquidificador o resultado é algo até reconhecível, mas definitivamente nunca visto antes.
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Assim como em Parasita, o drama familiar é algo elementar, não só em O Hospedeiro, mas em toda filmografia de Bong. A trama voa alto, fala de classes sociais, imperialismo ocidental e violência, mas no final tudo retorna as mais básicas (e potentes) relações entre pais e filhos. Mother (2009), seu menos conhecido longa, fala justamente sobre isso da forma mais direta impossível – uma mãe precisa provar à todo custo a inocência do filho.
O sucessor Expresso do Amanhã (2013) é o que podemos considerar o início da sua jornada para o Oscar. É nele que o sul-coreano atinge de forma mais direta a audiência ocidental, com uma ficção científica de estúdio estrelada pelo astro Chris Evans. O que não significa um Bong menos crítico ou subserviente a cartilhas. O filme é, aliás, um marco na sua filmografia, sendo considerado por muitos o seu melhor.
Okja (2017), uma obra original da Netflix,vem na mesma pegada de expansão de mercado (até pelo seu selo). O longa se tornou quase um clássico cultural no Ocidente, principalmente na abordagem relacionada ao veganismo e as críticas a indústria alimentícia. As marcas de autor seguiram intactas, com o diretor explorando as novas formas de produção para aumentar ainda mais as dimensões dos seus trabalhos.
É aí que então, finalmente, chegamos a Parasita, vencedor de quatro categorias no Oscar 2020 (incluindo Melhor Filme) e da Palma de Ouro em Cannes, no ano passado. O longa parece uma síntese de tudo que Bong desenvolveu ao longo de todo o século. Estão lá a mistura de gêneros, o drama familiar, a crítica afiada a estruturas do seu próprio país (mas também um senso apurado dos impactos do imperialismo ocidental), além do domínio completo das sensações e reações da plateia.
Muitos podem não considerar Parasita a sua melhor obra, até pela relação menos ambígua que o diretor estabelece entre os clichês e construções de personagens (o parâmetro altíssimo foi estabelecido por ninguém menos que ele mesmo).
De toda forma, dos grandes autores que o cinema sul-coreano possui em atividade – e estamos falando de mestres como Hong Sang-Soo e Lee Chang-Dong –, talvez não existisse assinatura melhor que a de Bong para quebrar hegemonias em premiações tão caquéticas como Oscar.