Letícia Sabatella: Várias mulheres em uma

Em conversa com o JC, atriz que está no ar como a vilã Delfina na novela 'Tempo de Amar' faz um balanço de seu trabalho
Robson Gomes
Publicado em 28/01/2018 às 5:00
Em conversa com o JC, atriz que está no ar como a vilã Delfina na novela 'Tempo de Amar' faz um balanço de seu trabalho Foto: Foto: Divulgação


“Ela representa a luz e sombra que todos somos”: Se a personagem Delfina, da novela das seis Tempo de Amar, da TV Globo, estivesse num julgamento, com esta frase, a sua “advogada” e intérprete da vilã, a mineira Letícia Sabatella, 46 anos, poderia conseguir sua absolvição.

Também pudera, a atriz de quase 30 anos de carreira consegue trazer para o público, através de seus trabalhos na TV, cinema e teatro, mais que a encarnação de um papel. E sim, a sensibilidade e humanidade de suas personagens ora emocionantes, ora controversas.

Fora das câmeras, Letícia também se revela uma pessoa especial: dona de suas atitudes, pensamentos e convicções.
Em entrevista ao Jornal do Commercio, a atriz não só celebra mais um trabalho de sucesso, mas expõe com uma delicadeza que é só dela, as bonanças e desventuras do ofício de atuar.

ENTREVISTA // LETÍCIA SABATELLA

JORNAL DO COMMERCIO – Letícia, a Delfina de Tempo de Amar é uma vilã descrita como ‘severa e amargurada’. Onde você foi buscar inspiração para compor esta personagem?
LETÍCIA SABATELLA – A Delfina tem se mostrado com muitas nuances. É uma personagem profundamente humana. É claro que ela poderia sublimar todas as opressões, todas as mágoas que ela carrega e se tornar uma santa. Mas também poderia seguir o caminho que ela seguiu, que é do transtorno emocional, do transtorno psíquico, que é muito humano também. Essa condição da opressão, da mágoa, do não reconhecimento, da falta de espaço. Ela escolheu seguir um caminho sombrio, que a fez adoecer de uma inveja patológica. Uma das minhas inspirações é Catarina de Médici, uma nobre italiana que se tornou rainha da França muito jovem. Ela tentou durante anos engravidar, depois de um tempo ela até conseguiu, mas durante este período sem filhos, o rei teve uma amante com total controle sobre ele e, além disso, era respeitada perante a corte. Então, além de não conseguir dar filhos ao rei, ela ainda vivia esta condição humilhante. Também busquei inspiração em Medeia, que comete um crime hediondo, mas que conhecendo sua história é possível compreender a amargura, a falta de saída desta mulher excluída que fez de tudo pra ajudar o marido. E a Delfina experimenta essa dualidade, porque ela vive às sombras de um coronel. Ela se envolveu com ele durante muitos anos, teve uma filha que ele se nega a reconhecer, a trata de maneira muito dura, né? Para mim, ela é uma personagem muito rica de humanidades. Ela representa a luz e a sombra que todos somos.

JC – Falando em vilã, não tem como não lembrar do sucesso que foi a sua Yvone em Caminho das Índias. E mesmo que ela seja de uma época distinta da Delfina, há algum ponto em comum entre elas?
LETÍCIA – Elas são diversas, né? A Yvone era uma psicopata moderada, 171, uma figura que vivia de trapaças e que aos poucos foi tomando gosto e acabou fazendo coisas cada vez mais interessantes pra trama da novela. Vai ficando mais acirrado o seu grau de empatia, mas a Delfina não é isso. A Delfina se traduz mais num transtorno psíquico, um transtorno emocional, que vai perdendo a empatia a medida em que ela não recebe essa empatia dos outros. Então eu a vejo mais como vítima. Não tentando vitimizá-la, mas eu consigo compreender suas escolhas. Ela é uma construção diversa. Ela tem mais útero, ela tem uma azia correndo dentro dela, diferente da Yvone, que tinha uma ausência de sentir, uma frieza... A Delfina, não. A Delfina tem o excesso desse sentir, que vai se tornando tão doído, que ela vai tentando congelar, se embrutecer. Tem uma construção diferente da Yvone, tão rica quanto.

JC – Dar vida a uma antagonista é mais instigante e desafiador para você enquanto atriz?
LETÍCIA – A personagem carrega uma grande riqueza, não necessariamente por ser antagonista, mas por ter tantas nuances, tanta humanidade, o feminino distorcido, sombrio, por ter uma trama que permite cenas interessantes e esses encontros, reencontros e desencontros. A Delfina exigiu de mim um mergulho naquilo que pode ser muito dolorido e um olhar pra isso muito de dentro. E eu mergulho me esvaziando e tentando reconhecer esse lado humano. E a Delfina me desperta compaixão e ela é desafiante por isso, porque tem uma legitimidade, porque ela vai adoecendo e fazendo coisas muito questionáveis, mas isso é legal... É sempre muito gratificante ter esses desafios sempre.

JC – Quais são os retornos que você tem recebido da trama e de sua personagem?
LETÍCIA – Acredito que a Delfina já tenha sido aceita e reconhecida pelo público. Ela é essa figuraça que tem uma pintura trágica, quase uma personagem de conto de fadas, mas também existe a questão da relação com a filha, a filha que é oprimida pela mãe que tenta colocar ordem no coreto. Então ela também tem essa construção que se aproxima muito da vida familiar. A resposta do público tem sido muito bacana e acredito que isso seja mérito do texto do Alcides e da direção do Jayme, que fizeram com que as pessoas não só compreendessem a personagem, como se identificassem com ela.

JC – Em 2018, você aparecerá na série Carcereiros dando vida à personagem Érika. Pode falar um pouco sobre este papel?
LETÍCIA – Eu fiz uma participação no último episódio de Carcereiros e essa participação se estendeu agora para mais 7 episódios que vão entrar na próxima temporada, em que o público vai poder conhecer melhor o presídio de mulheres. A primeira temporada mostrou muito do presídio masculino e agora a gente vai entrar num presídio feminino e ver as distinções entre um e outro. A Érika é uma personagem fascinante também, uma borderline, que se apaixona pelo personagem central da série, que é um carcereiro, e comete uma loucura por ele e acaba presa. Ele se apaixona por ela também e através desse relacionamento ele acaba indo visitá-la no presídio e se depara com essa outra realidade, que é o presídio de mulheres. O (José Eduardo) Belmonte é um diretor muito acolhedor de ideias, do que o elenco traz. Trabalhar com o Rodrigo (Lombardi), que é um superator, foi incrível. Assim que acabar a novela a gente já começa a gravar os episódios.

JC – Você é muito conhecida pelos seus posicionamentos políticos. Qual a importância de ter essa consciência para o público que te acompanha?
LETÍCIA – A consciência política é importante pra vida, pra todos. A busca em compreender porque o mundo é do jeito que é hoje e de que maneira a gente pode contribuir em suas melhorias, pra construção do nosso sonho de uma humanidade mais justa e pra recuperação de modelos que às vezes a gente foi tão arrogante de sobrepor, como culturas milenares, cultura de tribos com uma sabedoria de integração com a natureza... Então, pra mim, sempre foi uma coisa necessária questionar certas normas injustas da nossa sociedade, certas hipocrisias de você ter tanta riqueza nas religiões, mas práticas humanas tão agressivas com seu próximo... Esses questionamentos de coerência entre o que você fala e o que você pratica me fizeram compreender muitas coisas e a linguagem política é muito necessária para essa compreensão. E a gente precisa entender que as leis que são votadas vão interferir no modo como a gente vive a nossa existência. E quando eu falo da construção de uma vida melhor pra mim, falo pensando coletivamente. E o caminho pra minimizar desigualdades, reverter quadros socialmente injustos passa por uma consciência política. Querer transformar uma realidade que muitas vezes é dura em uma realidade melhor passa por consciência política não somente por atitudes de caridade, que acabam sendo paliativas.

JC – Se você pudesse se definir em uma personagem sua (da TV ou do cinema), qual seria e porquê?
LETÍCIA – Acho que de tudo um pouco, né? E de fases também, mudanças. Acho que eu fui uma há 10 anos atrás e sou outra hoje, então, indefinível. Antes eu achava que tinha possibilidade de me definir. Hoje eu sou incapaz de uma definição que eu possa tornar fixa. E talvez esse exercício de muitas personagens me ajude a descobrir cada vez uma nuance a mais ou reconhecer isso.

JC – Em pouco mais de 20 anos de carreira como atriz, existe algum papel que você sonha em fazer mas ainda não teve oportunidade?
LETÍCIA – Tem várias. De Lady Macbeth a uma palhaça. Medeias e heroínas também. Acho que não descobri ainda todas as personagens que eu gostaria de fazer. Essa personagem da Delfina abarca muitas coisas. Nesse momento eu não saberia definir outra personagem melhor do que essa. Eu tô achando ela muito bacana. Tô bem realizada nessa oportunidade que me deram e nesse reconhecimento de me encontrar capaz desta personagem tão desafiadora. Ela é realmente muito importante na minha carreira, muito forte. Muitas personagens que eu li em clássicos eu tô realizando nela. Ela abarca algumas pitadas de grandes clássicos.

JC - Se a Letícia pudesse dar um conselho para Delfina, qual seria?
LETÍCIA - Ame-se! Eu já te amo.

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