Uma biografia não dá conta de um mito; no máximo, em sua pretensão documental, cria um encadeamento de fatos, uma relação precária entre eles, cria as convenções de uma vida. Ao dedicar um livro a Marilyn Monroe (1926-1962), o escritor e jornalista americano Norman Mailer não levava consigo a pretensão de fazer um relato total da atriz americana. É como se ele, antes de tudo, entendesse que um ícone como ela fosse erguido por meio de mistérios e elipses.
Ali, como em outras grandes biografias, junto à vida e à essência de Marilyn, o tema é impossibilidade de captar um ser humano, ainda mais quando seu principal talento é a construção de personalidades e invenção de si mesmo. Talvez, por isso, Mailer preferia sugerir que seu Marilyn, clássico do jornalismo literário americano, escrito em 1973 e reeditado agora, não era exatamente uma biografia; estava mais próximo de ser “uma espécie de romance”.
Ele explica: “Use um ladrão para pegar um ladrão, e um artista para um artista”. Assim, o que ele quer é construir uma possibilidade de Marilyn: é uma biografia em grande parte especulativa, ainda mais por fazer a opção de mergulhar nos aspectos psicológicos da personagem. Assim, a imagem de uma órfã sofrida que a atriz fez de si mesma ao longo de sua carreira, citando a crueldade do seu orfanato e um possível abuso sexual, é descartada. Mailer prefere trabalhar com os conflitos dos desejos e personalidades dela – aqui, é finalmente mais do que uma imagem – que geram esses depoimentos “inventados”.
Claro que não está ausente ali a Marilyn que vemos nos filmes e fotos, a Marilyn-fetiche, que foi “o doce anjo do sexo”, “o caso de amor de todo homem com a América”, “a promessa de uma doce manhã de sexo”. Só que Mailer também traz a Marilyn que era a pessoa “mais maldosa de Hollywood”, segundo o diretor Billy Wilder, ou que faria Tony Curtis, perguntado sobre como era contracenar com ela, dizer: “É como beijar Hitler”.
Mailer narra esses momentos, sintomas de uma Marilyn que tinha dificuldades de se manter estável psicologicamente. “No set de Quanto mais quente melhor, levará os colegas atores aos horrores da repetição. Durante 42 tomadas, Tony Curtis tem de mordiscar 42 asinhas de galinha porque Monroe continua esquecendo sua fala (...) Curtis não comerá galinha durante muitos meses”, escreve.
Só que o grande momento é o procedimento de Mailer de se desfazer da imagem do mito (uma Marilyn pronta para consumo) para ficar com um mistério. O preço disso é a angústia de não poder solucioná-la, mas uma dúvida é melhor do que falsas certezas e impressões cômodas. Dedicar-se a um livro sabendo que ele deixará e criará lacunas é um ato de paixão. E o que é melhor que um autor escrevendo sobre o que ama para combater a frieza dos fatos que limitam uma lenda?
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio deste domingo (16/6).