Ricardo Lísias fala sobre livro escrito com pseudônimo Eduardo Cunha

O autor aborda o romance Diário da Cadeia na sua participação na Mostra Cultural do Shopping Recife
JC Online
Publicado em 21/05/2017 às 6:33
O autor aborda o romance Diário da Cadeia na sua participação na Mostra Cultural do Shopping Recife Foto: Divulgação


O ex-deputado Eduardo Cunha é uma das figuras centrais do turbilhão político que o Brasil enfrenta desde 2015 – e voltou ao centro recentemente, quando gravações indicam que o presidente Michel Temer aprovou a compra do seu silêncio na cadeia. Quando foi afastado do posto no Congresso Nacional, uma das afirmações que o político fez foi a de que pretendia escrever um livro sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Ao ouvir isso, um escritor começou a imaginar como seria essa obra do ponto de vista ficcional.

Nascia ali o volume Diário da Cadeia (Record), obra assinada por “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. O livro é um dos temas de uma das mesas de neste domingo (21), às 16h, da Mostra Cultura do Shopping Recife, que traz o escritor Ricardo Lísias para uma conversa. Além dele, a programação do dia conta com a poeta gaúcha Angélica Freitas, do excelente livro Um Útero É do Tamanho de um Punho (Cosac Naify), às 18h, em bate-papo com o Clube do Livro Leia Mulheres, e com um show de Isadora Melo com o violonista Juliano Holanda às 19h. As atividades são gratuitas e acontece no Terraço de Eventos do local.

Diário da Cadeia foi lançado cercado por muita polêmica. Inicialmente, apesar do nome do autor deixar claro que se tratava de uma ficção, ninguém sabia quem havia feito o livro. O ex-deputado Eduardo Cunha entrou com um pedido na justiça para proibir a circulação da obra, que foi atendido em primeira instância e, depois, rejeitado. No meio da disputa jurídica, o nome de quem criou o pseudônimo foi revelado nos autos.

Não é a primeira vez que o hábil jogo de mistura de realidade e ficção de Lísias chama atenção – inclusive da justiça. Ele já havia sido processado (e, depois, inocentado) por forjar documento, tudo isso dentro do universo de uma obra de ficção, o livro Delegado Tobias. Afinal, sua literatura, através da autoficção ou indo além dela, sempre cutuca os limites do real e do criado.

ENTREVISTA

JORNAL DO COMMERCIO - Você escreveu e não escreveu Diário da Cadeia. Como surgiu o projeto e o formato de Diário da Cadeia?
RICARDO LÍSIAS - Como todo mundo, fiquei bastante ligado na Operação Lava Jato. Eu já tinha terminado A vista particular e precisava de algum outro projeto para desenvolver, nem que fosse por treino. Quando começou o segundo semestre do ano passado, já com o ex-deputado Eduardo Cunha anunciando a redação do livro Impeachment, comecei a escrever um texto imaginando como poderia ser esse livro, do ponto de vista ficcional. Fiz vários estudos, de conteúdo e de estilo. No entanto, lá pelas tantas, o ex-deputado vai preso. Vi que o projeto não fazia sentido se não contemplasse esse novo fato. Comecei então um diário. A cada dia, sua respectiva entrada, escrevendo no próprio dia. Com mais ou menos um mês de trabalho, mudei de ideia: não me parecia só um treino, uma distração para mim, mas achei que eu tinha na frente algo relevante. Fiz, então, e como sempre, um plano. Seria um livro assinado por pseudônimo, que deveria ser publicado por uma editora com quem eu não trabalhava e sob certas condições. Procurei o editor da Record, Carlos Andreazza, e expus a ideia. Ele entendeu e aceitou a proposta. A publicação, por se tratar de obra de intervenção, não poderia demorar. Escrevi o diário contemplando os meses de outubro, novembro e dezembro, junto com o tal Impeachment. O editor foi veloz e o livro deveria ter saído no meio de março, mas aí veio a ação que acabou o censurando temporariamente.

JORNAL DO COMMERCIO - Diário da Cadeia é uma obra que termina atuando dentro da realidade - falando dela, se misturando com ela e sendo atacado por ela. É mais um limite, como no caso do Delegado Tobias (que era um livro seu, não do Eduardo Cunha pseudônimo), ultrapassado pela escrita?
RICARDO LÍSIAS - A ideia de fato era essa. E essa era uma ligação do livro Diário da cadeia com o resto da minha obra. A tentativa de intervenção é evidente desde a palavra “pseudônimo” até a circulação do livro, da forma como ele foi feito.

JORNAL DO COMMERCIO - O quanto a interferência de Eduardo Cunha na justiça - que terminou provocando a revelação do seu nome - prejudicou a circulação desse livro e a projeto de continuar a escrita como Eduardo Cunha (pseudônimo) ou outro nome?
RICARDO LÍSIAS - A decisão de primeira instância impediu a circulação do livro e, entre outras coisas, acabou causando a divulgação do pseudônimo. Como se tratava de uma obra conceitual, que depende de diversos vetores diferentes, um deles era importante e está destruído. A rigor, a decisão do Poder Judiciário estragou parte da minha criação, ou ao menos me obrigou a rever parte dela. A própria justiça, três vezes em seguida, através dos meus recursos e de uma decisão da ministra Rosa Weber, reformou a decisão de primeira instância, mas a revelação do pseudônimo é irreparável.
Os problemas continuaram: a distribuição do livro, para ser refeita, é complicada, pois eles ficam pulverizados pelo mercado. Então muitas livrarias ainda não receberam. Para o evento no Recife, vou levar os exemplares.
Mas acho importante destacar algo positivo: outra jurisprudência criada em defesa da arte.

JORNAL DO COMMERCIO - O livro traz "pistas" sutis de que é uma obra performática, uma ironia. Como foi compor isso com o Eduardo Cunha (pseudônimo), entre a paródia e o efeito de real?
RICARDO LÍSIAS - Sim, a ideia não era fazer nenhuma representação do ex-deputado federal, nem imitar o estilo dele ou fazer algo verossímil. Aliás, verossimilhança é o tipo de coisa que não me interessa muito, bem como representação. Eu queria fazer uma intervenção no real, por isso escolhi a sátira.

JORNAL DO COMMERCIO - Acredita que o caso ajuda a ver como a literatura pode ser forte e impactar na realidade atual?
RICARDO LÍSIAS - Acho que sim. Enfim, a história de que a literatura não tem mais importância, perdeu o lugar na sociedade e só importa para um pequeno grupo não é verdade. A literatura tem sim força política e pode incomodar o poder, ou os vários poderes: o político, o econômico e outros. É preciso simplesmente buscar uma forma eficaz para buscar esse incômodo. Não é essa uma das funções mais notáveis e importantes da arte? E acho que é.

JORNAL DO COMMERCIO - Em redes sociais, você tem reclamado das críticas que tem recebido por ter lançado o livro pela editora Record, do editor Carlos Andreazza. Isso é fruto de uma polarização muito grande entre direta e esquerda? Como é possível lidar com essa cobrança?
RICARDO LÍSIAS - Só uma nota, antes de tudo: não acho que muita gente que se apresenta como “de esquerda” é de fato de esquerda mesmo. No caso, é apenas uma espécie de roupa para encontros com os amigos, eventos literários, esse tipo de coisa. A esquerda precisa desafiar o poder, e a maioria absoluta do meio literário não desafia absolutamente nada.
O que está acontecendo é que um grupo de pessoas desse meio está me achacando de algumas formas: através de agressões em redes sociais, um poeta me xingou na rua e estão fazendo contato com um ou outro organizador de eventos, pedindo que eu seja desconvidado. Antes de tudo: não está dando muito certo, pois tenho cada vez mais convites. Só hoje acho que dei umas dez entrevistas...
O curioso é ver que se trata de gente do meio literário: ou seja, não incomodei só os políticos...
Sobre a polarização, ela existe. Mas precisamos deixar algo claro: uma coisa é um político que defende tortura, por exemplo. Com esse eu não falo. Outra é uma pessoa que tem ideias na política e na economia de direita. Ora, com eles não vejo por que não conversar. Há algo até importante: certos grupos de direita merecem aplauso pela luta por liberdade de expressão, embora deles eu discorde do resto. Por sua vez, pessoas que se dizem de esquerda – essas que dizem sem de fato ser – costumam ser grosseiras e bastante autoritárias. Querem me dizer com quem eu posso e com quem eu não posso falar. Evidentemente, não posso aceitar.

JORNAL DO COMMERCIO - Trabalha na escrita de algum livro atualmente? Pode falar um pouco dele?
RICARDO LÍSIAS - Eu escrevo todos os dias. Do contrário, não me sinto bem. É algo realmente próximo à dependência. Então sempre estou desenvolvendo algum projeto. Nesse momento estou escrevendo um ensaio chamado A literatura no banco dos réus – uma tentativa de pacificação entre a arte e o direito. Também continuo, de forma ainda um tanto errática, o projeto dos pseudônimos. Mas disso prefiro não falar.

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