Na Sala Aberta, em São Paulo, onde expunha alguns desenhos inéditos, a equatoriana radicada em Buenos Aires Paola Gaviria, conhecida na cena quadrinística como Powerpaola, tomava um chá enquanto concedia esta entrevista, numa manhã de sábado. Em um momento intimista e franco, tal qual as suas narrativas, ela fala sobre a vida, a adaptação da HQ Vírus Tropical para as telas, e a nova novela gráfica QP (Lote 42), que mostra, corajosamente, um relacionamento em transformação.
JORNAL DO COMMERCIO — Paola, suas histórias abordam sempre questões íntimas e relacionais. Ao menos é assim em Vírus Tropical e agora no QP também. Você sempre pensou em seguir por esse caminho?
POWERPAOLA — Creio que meu entusiasmo vem de contar o que se passa comigo. O que passa ao meu redor. Antes tratava de ser mais fiel à realidade, agora eu faço algo mais como uma autoficção. Minha matéria-prima é a autobiografia, mas a partir disso posso criar o que eu quiser. Faço uso de alguns elementos surreais porque também quero que os leitores interpretem as histórias com as suas próprias realidades. Cada vez isso me interessa mais, ser menos explícita. Já fiz trabalhos colaborativos de outros gêneros, mas não me entusiasmam tanto. Gosto mesmo é de retratar o que me move por dentro e que preciso colocar para fora.
JC — Outra questão é que num dado momento do livro você menciona "ainda não sei onde quero viver". O que te levou a se estabilizar em Buenos Aires? Ou você pretende ainda se mudar mais vezes?
POWERPAOLA — Trato de viver o presente. Não me faço muitos questionamentos do que vai passar comigo porque tudo sempre foi muito mutável. Eu gosto muito de Buenos Aires porque tenho muitos amigos ilustradores. Me reúno com eles para conversar e desenhar duas a três vezes por semana. Há exposições, festivais de fanzines. É uma cidade muito viva.
JC — Você também menciona que diversas vezes os quadrinhos feitos por mulheres tendiam a ser reduzidos ao "feminino". Acha que esse panorama mudou?
POWERPAOLA — Juro que está mudando pouco a pouco. Eu não gosto desses estereótipos do que é o feminino e o masculino. Me chamam atenção as pessoas que podem tranquilamente usar seu feminino e seu masculino. Há muitos homens que trabalham de uma maneira "feminina". E não vejo isso como algo negativo. Mas no momento em que escrevi essa história a única coisa que parecia que podiam falar sobre o trabalho de uma quadrinista era isso. Nunca perguntamos a um homem sobre seu trabalho "masculino". E penso que talvez o que minha geração tenha feito foi se autoconhecer para poder começar a narrar. Creio que nessa geração o que estão fazendo é outra coisa. Estão evoluindo. Quando eu comecei a fazer quadrinhos haviam poucas garotas. Ou pelo menos eram poucas as que se viam no panorama. Não sei, poderiam estar escondidas dentro de suas casas escrevendo e desenhando, claro.
JC — Você também se mostrava ser uma jovem ansiosa, um pouco angustiada, com relação a onde a sua arte poderia te levar. Como se sente, tendo triunfado no quesito de ser uma mulher criativa e independente?
POWERPAOLA — Creio que uma pessoa nunca está inteiramente satisfeita. Nesse dado momento eu sofria muito porque tinha que trabalhar com outras coisas para sobreviver. Então ficava com muito pouco tempo para desenhar e era a única coisa que eu queria fazer. “Q” foi uma das pessoas que me disse 'deixe de trabalhar e se dedique somente aos seus desenhos'. A princípio, muitas pessoas que liam as minhas histórias diziam que eu não contava nada, como se toda narrativa precisasse ter começo, meio e fim. E eu conto histórias cotidianas que não tem ponto final. São contemplativas. E isso existe na literatura, no cinema. Por que não poderia haver nos quadrinhos? Comecei a acreditar nisso. Durante muitos anos, ilustrei para poder sobreviver. Trabalhava com livros, campanhas, milhões de coisas. Aprendi muito nessa época, foi como uma carreira. E me fez começar a investigar coisas que jamais havia pensado em desenvolver. Me sentia muito afortunada por poder viver disso, mas sentia que também gastava todas as minhas energias. Quando eu queria fazer meus próprios projetos, estava esgotada. Então, nunca é uma situação perfeita.
JC — E quais são os projetos que estão nos seus planos no momento?
POWERPAOLA — Ah, são tantas coisas ao mesmo tempo. Estou fazendo um livro que vou publicar no México, em setembro. É de todos os meus desenhos que faço enquanto espero. E esse é o mais natural. É tipo o menos conhecido do meu trabalho porque o faço mais como um exercício de observação. Também estou fazendo uma novela gráfica só de bicicletas. E uma outra que é um diário de todos os festivais pelos quais eu e Santiago (Caicedo) passamos com a animação Vírus Tropical. Está muito divertido, se passa em diversas cidades e é composto por anedotas que ocorreram com todos nós da equipe. Ainda estou trabalhando em um projeto de ilustração sobre mulheres. As coisas somente de ilustração cada vez faço menos, mas as coisas que aceito tem a ver com o feminismo, com coisas políticas. É um ativismo de alguma maneira também.
JC — Sobre a animação Vírus Tropical. De onde veio a ideia de levar a HQ para as telas?
POWERPAOLA — Santiago Caicedo, o diretor do filme, é um amigo meu da França. É o namorado da minha melhor amiga, que fez a música da animação. "Q" fez o roteiro. Somos todos amigos, artistas plásticos. Eu e Santiago já havíamos trabalhado juntos em um curta (Uyuyui!), e quando eu terminei a novela gráfica ele me instigou a fazer a animação. Participamos de alguns editais na Colômbia, ganhamos para fazer o teaser, depois para a produção. Bom, cada um tinha a liberdade para fazer o que quisesse. Já sabíamos que queríamos ser muito fiéis à novela gráfica, mas também podíamos criar a partir disso. "Q", por exemplo, tirou tirou algumas coisas do roteiro, mas acrescentou outras, como o diálogo de quando conheci minha família. Ele conhecia minha história muito bem, então não era tão difícil. Foi tudo feito de uma maneira bem orgânica, entre amigos.
JC — O que acha do cenário brasileiro de quadrinhos?
POWERPAOLA — Os quadrinhos do Brasil parecem ser um mundo super amplo. Vários mundos dentro de um só. As feiras e festivais em que estive são enormes. Lá na Argentina há muita gente no mercado, mas não é como aqui, há muita diversidade. O que mais me interessa é o que o pessoal jovem está fazendo aqui, que são mais experimentais. Por exemplo, o trabalho de Julia Balthazar e o de Paula Puiupo. Elas duas possuem algo muito genuíno na forma de narrar e desenhar que sai um pouco da realidade. Isso me chama muito mais atenção do que aquele quadrinho clássico, realista.
JC — Para finalizar, de onde vem o Power da Paola? E de onde você arranca seu power, seu poder?
POWERPAOLA — Creio que é primeiro como uma invenção, fingir que tenho poder e que posso com tudo. E isso em algum momento sucede. Sempre fui muito segura, de não saber se o meu trabalho estava indo bem ou para onde eu iria com isso. Já outra parte de mim ao mesmo tempo dizia que estava bem, que eu ia conseguir, que não me importava. Isso me levou a não crer nessa outra parte que não me servia para nada. Creio que todos somos um pouco assim. E Powerpaola não foi um nome que eu pus para mim mesma. Quando estava na França, tinha um namorado francês, e numa festa o flagrei com outra garota. Foi horrível. Estava há uma semana na França, mas estávamos juntos há cerca de um ano e meio, desde a Colômbia. Fui embora da festa e entrei no metrô chorando. Me sentia tonta, muito mal. Aí um africano sentou ao meu lado e me perguntou como eu me chamava. E sempre que eu dizia Paola, ele dizia power. Até que escrevi Paola, ele pegou a caneta, riscou meu nome e escreveu power. Para mim isso foi como um sinal. Passei a pensar 'estou em Paris sozinha, posso fazer o que eu quiser'. E o poder, na realidade, está em tratar de enxergar as coisas a partir de outra perspectiva. No outro dia comprei umas folhas gigantes para desenhar, comprei uns patins. Paris se tornou um lugar muito mais meu, sabe?. Daí, quando criei meu blog (Historietas Reales) e meu Flickr pus o nome Powerpaola. E quando comecei a fazer HQs usei também. Nessa época, os quadrinhos eram muito mal vistos nas artes plásticas, então servia também como um pseudônimo. Assim nasceu Powerpaola.