Em um período de pouco mais de um mês, o Recife recebeu quatro eventos voltados para a produção poética de mulheres, principalmente negras. No começo de outubro, a Bienal do Livro de Pernambuco recebeu a mesa "Escritoras Negras: o poema quebrando silenciamentos", com Inaldete Pinheiro, Odailta Alves, Bell Puã e Patrícia Naia. No final do mesmo mês, Odailta organizou o primeiro Encontro Nacional de Escritoras Negras, reunindo autoras de dezenas de Estados. Nas últimas duas semanas, o Slam das Minas, coordenado por Patrícia Naia e Amanda Timóteo, realizou a sua competição, consagrando Nenna Callejera como campeã, e ainda organizou o Festival Resistência Poética, juntando os slams do Nordeste para uma série de oficinas e debates.
Essa pluralidade de eventos não é uma casualidade do calendário. Há uma longa trajetória para que essas vozes, há muito silenciadas, comecem a ganhar justos espaços na cena poética e literária do Recife. Uma de suas pioneiras certamente é Inaldete Pinheiro, 73, uma das fundadoras do Movimento Negro no Recife, através do qual, a partir dos anos 1970, já disseminava sua poesia em jornais militantes. A autora nasceu em Parnamirim, Rio Grande do Norte, onde se afeiçoou aos livros, estimulada pelo grande leitor que era seu pai. Começou a escrita com as cartas e logo foi aos poemas, os quais fazia para ajudar suas amigas no flerte. Veio ao Recife em 1969 para se formar enfermeira e, com mais dois amigos, começou a agir politicamente na militância negra, inspirada por exemplos vindos de outros estados e da África.
"Sempre tivemos a consciência lá em casa, a questão do racismo era evidenciada, mas não tínhamos um direcionamento político. Comecei a agir ao entrar em contato com a chamada “imprensa marrom”, na época, que trazia relatos da Guiné-Bissau e outros países que foram colonizados por portugueses e estavam em uma fase de libertação, enquanto aqui estávamos na ditadura. Organizei com mais dois amigos o Movimento Negro no Recife e fizemos uma série de reuniões públicas, visitações em escolas, revisando a história do Brasil, a literatura e o racismo em Pernambuco", relembra.
Durante esse período, utilizava os jornais dos movimentos sociais para dar vazão à sua poesia. Já no final dos anos 1980, veio seu primeiro livro, Cinco Cantigas para Você Contar, o primeiro de alguns infantis que lançaria, sempre carregando visões positivas da herança africana em nossa cultura. Inaldete é da mesma geração de Conceição Evaristo, a quem admira pela “audácia e rigor”. É a partir dessas portas que vão sendo abertas por outras que também vê a proliferação de jovens autoras negras, como ela já foi um dia.
"Apareceram novas escritoras por aí e no Recife não foi diferente. E também muita gente mais corajosa que eu. Eu só faço admirá-las. Há mais abertura e disposição da sociedade, não era possível que não houvesse essa abertura. Ninguém tem mais receio de ir na praça e fazer seu poema. Eu não tive essa oportunidade ou não criei essa oportunidade. O Slam das Minas, por exemplo, é pura ousadia e eu tenho muita admiração por elas”, conta. Inaldete, que além de escritora também atua como pesquisadora, traz em sua carreira publicações infantis, de não-ficção e antologias, como Racismo e Anti-Racismo na Literatura Infanto-Juvenil e Pai Adão era Nagô.
Inaldete é inspiração para Odailta Alves, 40, escritora, pesquisadora, atriz e articuladora do primeiro Encontro Nacional de Escritoras Negras, realizado no final do último mês. Odailta hoje é autora, mas foi “a primeira que aprendeu a ler dentro do barraco”. Filha de analfabetos, a escritora cresceu no Campo do Onze, Santo Amaro, tendo a oportunidade de estudar em uma escola pública. Lia cartas, onde desenvolveu também a escrita. Descobriu as bibliotecas e virou o que chama de “uma ratinha” do espaço. Mesmo sendo olhada de lado muitas vezes nesses lugares.
"Depois das cartas, fui me tornando uma leitora no geral, mas era uma leitura muito branca. Os clássicos são na maioria feitos por homens brancos, orientados pela escola. Foi importante por me ter me dado esse acesso à literatura, mas, ao mesmo tempo, dizia para mim que ali não era meu local. Nos é dada uma literatura como uma arte empoderadora, uma arte que sensibiliza, mas o corpo negro e o corpo da mulher negra não aparece nessa arte como um corpo sensível ou no lugar dessa musa inspiradora", relata.
Odailta Alves no I Enegras - Foto: Mayara Barbosa/Divulgação |
Nesse cenário, analisa que começou a escrever tardiamente, pois não compreendia que suas narrativas também eram dignas de literatura. Só conheceu autoras negras na universidade, onde também pesquisou, em seu mestrado, a influência africana na língua portuguesa. Lá, surgiram inquietações sobre questões raciais, começando a frequentar eventos, se aproximando da militância e olhando com outros olhos para o lugar de onde veio. "Comecei a usar a linguagem poética para trazer esses discursos silenciados. Entrei no processo da escrita sem nem me dar conta", explica. Em 2016, após fazer sua literatura circular por e-mails e recitais por 10 anos, lançou Clamor Negro, seu primeiro livro, realizado e publicado de forma independente, estando já em sua sexta edição, transformado em um espetáculo teatral. Também é autora de Escrevivências e Letras Pretas.
"As editoras têm práticas bem corporativas e até racistas. Como temos dificuldades, é impossível estar tirando cinco mil, seis mil reais para publicar livro. É preciso quebrar com essa narrativa, temos muitas mulheres escrevendo que não conseguem entrar nesse mercado editorial e isso não as invalida enquanto escritoras. Eu já tenho 40 anos, Conceição Evaristo precisou chegar aos 70 para ser uma escritora reconhecida. As meninas mais novas hoje já têm essas referências e já estão arrumando alternativas para furar essa bolha”, afirma.
Dentro dessas alternativas, a iniciativa de Patrícia Naia, 31, e Amanda Timóteo, 23, vem se mostrando como uma das mais potentes. O Slam das Minas, realizado no Recife desde 2017, se tornou um espaço de vazão para diversas histórias e poéticas das quais o cânone não passa nem perto. As batalhas de poesias, originadas na Chicago dos anos 1980, entraram no Brasil pelo Sudeste e hoje já estão bem pulverizadas no Nordeste. A partir do contato com o que rolava em São Paulo, e com ajudas das mulheres de lá, Timotéo e Amanda, que já organizavam o sarau do coletivo Controverso Urbano, montaram o primeiro evento do gênero na capital pernambucana.
As jornadas de ambas pela cena literária e seus olhares sobre com ela funcionava foram a semente de tudo. Ambas se aproximaram da escrita ainda nos tempos de colégio, mas assim como Odailta, tinham dificuldade em colocar para fora, por não localizarem seus textos dentro dos padrões. Com o passar do tempo e as vivências, foram encontrando aberturas, desenvolvendo uma auto-estima autoral e levando suas poesias para o mundo. Além da internet, os zines foram um desses meios, como o Desapropriada de Amanda e o Poemagem de Patrícia, além do livro O Punho Fechado no Fio da Navalha.
Ao começarem a circular pelos saraus da cidade, foram vendo que os espaços nem sempre eram os mais confortáveis para as mulheres. Começaram a trazer outro caminho quando se aproximaram no coletivo Controverso Urbano e deram um passo além com o Slam. “Eu e Naia tínhamos um incômodo sobre a questão das mulheres nesses espaços dos saraus, nos sentíamos oprimidas com a pouca presença feminina neles. Tinha situações que não gostávamos e sempre percebemos machismo, dos graves aos pequenos. Sacamos o movimento do slam no Sul e decidimos montar a batalha. Fizemos uma primeira edição e deu certo, lotou e tudo mudou”, relembra Amanda.
Amanda Timóteo em ação. Divulgação |
“Temos várias histórias de meninas que recitaram a primeira vez lá, chorando, com muita timidez e insegurança, mas hoje estão aí nas redes, são poetas, fazendo eventos, participando de várias ações. Criamos a ideia de que a competição não é o foco principal, que estamos construindo na cidade um espaço que ajude essas poetas daqui a perderem o medo de contarem suas histórias. Olho para 10 anos atrás e vejo uma diferença muito grande”, afirma Naia.
A jovem de 26 anos passou sua juventude em batalhas de rap, sempre gostando do hip-hop. Quando viu a atmosfera do slam, com pulsões da cultura de rua e poesia marginal de protesto semelhantes ao hip-hop, se encantou e chegou ao espaço. “Há uns dois anos, eu fui incentivada pela mãe de Bell Puã (vencedora do Slam das Minas PE e Slam BR em 2017) a recitar, dentro do Slam das Minas. Depois disso, me empolguei e me senti estimulada a chegar nos cantos e recitar”, afirma.
Bater de frente com o silenciamento é um exercício que perpassa as mais diversas esferas das vidas dessas mulheres. Conciliar o tempo de criar com o tempo de sobreviver, para Nenna, é um dos maiores obstáculos. Ela tem na arte esse espaço de luta, mas há o aluguel, o colocar comida na mesa, o viver. “São vários fatores estruturais que nos fazem silenciar. Nossos corpos provocam isso, de onde a gente vem, qual a perspectiva que a gata tem? A expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos, falta tempo, incentivo financeiro e afetivo, a coragem de levantar da cama”, afirma Nenna.
A poeta, que também trabalha como ambulante, vendendo alimentos, caderninhos e ilustrações, vai a São Paulo para a competição nacional. Lá, pretende fazer contatos e desenvolver também um trabalho musical dentro do rap. "O contato que isso me proporcionando é muito foda, me alimenta. Amo me comunicar, é assim que sei me expressar e minhas perspectivas e ter uma resposta disso me motiva", conclui.
Nenna Callejera é a vencedora do Slam das Minas PE 2019 |