Em 1937, no texto O Futuro da Música – Credo, o compositor John Cage analisava o contexto da música de seu tempo e afirmava: “Enquanto no passado o ponto de discórdia estava entre a dissonância e a consonância, no futuro próximo ele estará entre o ruído e os assim chamados sons musicais”. Conforme o tempo avançou, o ruído tornou-se questão ainda mais urgente, não só na música contemporânea mas também nos estudos de filosofia da música e teorias da comunicação. Atualmente o Brasil vive um momento rico com vários selos dedicados a essas formas de experimentação, como a Sinewave, Seminal Records, Meia-Vida, Quintavant, Desmonta, Propósito e Domina. No Recife, o Estranhas Ocupações tornou-se um importante mediador e articulador de um grupo de artistas que trabalham o ruído e o silêncio como forma central de reflexão estética sobre afetos e modos de escuta.
O Estranhas Ocupações foi fundado pelo músico e artista sonoro Yuri Bruscky, filho do artista plástico Paulo Bruscky. Ele começou a se envolver com música ainda na adolescência. Fez parte do movimento punk e hardcore da cidade, tocando baixo e bateria em algumas bandas e fazendo zines. Aos poucos foi criando interesse pelo som de grupos experimentais de noisecore. “Comecei a me envolver mais com noise lá por 2007, 2008. Eu já era zineiro e tinha toda essa cultura do Do It Yourself (Faça Você Mesmo). Me sentia atraído por aquilo por causa da sensação de liberdade”, relembra.
Tendo essas experiências como base, em 2010 ele fundou o selo, focado em noise, música eletroacústica, improvisação livre e projetos conceituais. O catálogo possui seis álbuns, incluindo discos dos cariocas J.-P. Caron e Victim! (projeto solo do produtor Cadu Tenório), do suíço Dave Phillips, e dos pernambucanos Thelmo Cristovam (pesquisador independente de psicoacústica e gravações de campo) e o lendário grupo experimental Hrönir. Tudo está disponível gratuitamente em sua página no Bandcamp.
Em janeiro, o Estranhas ganhou ainda o subselo Calafrio, especializado no subgênero noisecore – uma variação do punk e hardcore que se funde com o noise. Sua estreia veio com o relançamento de Colhendo Desespero, demo tape de 1994 do grupo sergipano Putrefação Humana em 300 cópias de vinil de sete polegadas. São 85 faixas espremidas dentro de 16 minutos (sendo 8 em cada lado), entre ruídos espasmódicos que beiram as zonas limítrofes da canção.
Mas nem só de lançar discos vive o Estranhas Ocupações. “Eu encaro o selo – não só o meu, mas qualquer selo independente – como um trabalho feito por e para aficionados. O que importa é muito mais a difusão da coisa e a criação de um ambiente propício para debate, que as pessoas que têm interesse possam se perceber e trocar informações ou discutir sobre aquilo é mais importante do que pensar se vou reaver o dinheiro dos discos ou se tal disco vai vender as 200 cópias prensadas”, analisa Yuri.
Já em 2011, ele produziu o braço recifense da tour brasileira de Hans Koch, renomado improvisador suíço que trabalhou com artistas do porte de Cecil Taylor e Fred Frith. Koch apresentou-se em fevereiro na Casa de Seu Jorge e no museu Murilo La Greca, onde também ministrou uma oficina de improvisação junto com Javier Carmona, Panda Gianfratti, Thomas Rohrer e Márcio Mattos.
Atualmente, junto com o músico Cássio Sales (baterista da Cosmo Grão), o Estranhas Ocupações realiza o Rumor, ciclo de música experimental e arte sonora que ocorre no Edifício Texas, no bairro da Boa Vista. Indo para a quarta edição, que será com o projeto já recebeu sessões de improviso de Grilowsky, Casa de Máquinas e Túlio Falcão (veja vídeo abaixo) acompanhados por Thelmo Cristovam, o próprio Yuri e outros. A próxima edição terá o músico pernambucano Missionário José, que trabalha com eletroacústica.
antes de ir embora, uma moça deixou esta poesia: "não vai melhorar não? isso aqui parece a morte".yuri brusky, thelmo cristovam e túlio falcão no rumor #3Publicado por o volume morto em Quinta, 21 de janeiro de 2016
Nessas apresentações, são abertos espaços de liberdade e experimentação sonora. Para Yuri, tudo deve ser regulado pelo diálogo e mediação: “O princípio da improvisação livre coletiva é uma prática dialógica de mediação de alguma coisa que está ali e é a cara de todos. Para mim, improvisação é esse diálogo. Não me intimido se chega alguém pra tocar que é pós-doutor, porque no fim das contas é som, é manipulação de massa sonora”. E sobre os limites da experimentação, ele comenta: “Acho que é importante acabar com o nivelamento de quem assiste e quem faz, mas também não é chutar o balde e qualquer coisa é qualquer coisa. Tudo parte da forma como se media o que é feito”.
Cruzamentos entre ruído e silêncio
Um recente lançamento do Estranhas Ocupações é Breviário, do músico e filósofo carioca J.-P. Caron. O disco já está disponível em formato digital e a versão física deve começar a ser vendida ainda este mês. De tom lírico e confessional, o álbum entrelaça sons cotidianos, cruzamentos entre ventania, trânsito, buzinas, passos e outros em faixas curtas.
O disco é acompanhado por um livro, desenvolvido pela artista visual Sanannda Acácia, com partituras, muitas vezes indeterminadas, escritas por Caron. Ele explica: “Uso o termo ‘partitura’ de forma bastante ampla, para caracterizar também as Bulas, ou instruções verbais que têm no livro. Paradoxos são um dos meus interesses e você encontra também no livro partituras que não determinam nada. Ou seja, a rigor, não são partituras. Ou encontra poemas a serem usados-como partituras. Ou seja, poesias que por alguma forma de ‘détournement’ passam a orientar ações. Justamente quebrar a unidade da categoria partitura, e, pelo lado do som, quebrar a unidade da categoria ‘música’ me interessava”.
Breviário possui uma relação íntima com o ruído, mantendo particularidades. “O interesse para mim não está no uso ou não de ‘ruído’ no sentido normalmente alocado para essa palavra pelo noise. O mais importante é a disposição particular das coisas que pode ocasionar aberturas para ainda novas disposições naquele que ouve. E isso pode ocorrer com vários tipos de material, assim como vários tipos de material podem se tornar ‘ruído’ ao se articularem de maneira menos habitual”, afirma Caron.
Mas o ruído, ele aponta, não é único elemento do projeto. Afirma: “não estou certo de que o ruído seja uma categoria tão central assim no Breviário. Silêncio talvez seja uma categoria tão importante quanto e a faixa final, de alguma forma, procura encenar a passagem de uma totalidade vibratória que chamamos ruído para uma outra totalidade vibratória a que chamamos silencio. E mostrar, talvez um pouco cageanamente, que este silencio não é muito silencioso, mas se comporta como ainda outra modalidade de ruído, caos ou ordem. No fim temos diferentes variantes de ruídos povoando o disco, mas que chamamos normalmente por nomes diversos: barulho, silêncio, som, música, palavra, imagem”.