Meio século depois enfrentar o público do Maracanãzinho e a censura do regime militar, cantando Gotham City (parceria com Capinam), no IV Festival Internacional da Canção, aos 75 anos, Jards Macalé lança disco de inéditas, instigante e provocador com a mesma ira do anjo exterminador de 50 anos atrás, adaptada para o século 21. Desde sexta (8), circula pelas plataformas digitais o álbum Besta Fera (Natura Musical), o primeiro de inéditas em pelo menos 20 anos. Um trabalho marcante, a começar pela capa, a última das cerca de trezentas feitas pelo recifense Cafi, uma silhueta de Macalé com cabelos e óculos realçados pela luz. As sessões de fotografias aconteceram dois dias antes de Cafi sofrer infarto fulminante na virada deste ano.
Depois vem a produção e os músicos com quem Macalé gravou, a fina flor da nova vanguarda paulistana: os produtores Kiko Dinucci, e Thomas Harres. Tocam com eles, Pedro Dantas (baixo) e Guilherme Held (guitarra). Por sua vezes, os quatro criaram com Jards Macalé os arranjos, dos quais também participou Rômulo Fróes e Thiago França. Acrescentem-se: Rodrigo Campos, Juçara Marçal, Ava Rocha, Clima e Tim Bernardes, uma geração de músicos para quem Macalé é uma das referências, certamente um dos motivos a convergência entre eles ter acontecido de maneira tão feliz.
Sai o morcego entra o Vampiro de Copacabana, faixa inicial do álbum (com Dinucci): “Ah corpo no breu/ dama na noite/ah, caminho torto/ ah, olhos de sangue”, com guitarras distorcendo-se, num final épico que lembra um Tom Zé psicodélico. Aos Vícios, do poeta Gregório de Matos, é a inspiração do título do disco e da faixa homônima, um samba, com sax, violão e cavaquinho, que abriga em 2m17s as 20 estrofes do poema: “A ignorância dos homens destas eras/ Sisudos faz ser uns, outros prudentes/ Que a mudez canoniza bestas feras”.
Com as palavras do poeta baiano, Jards Macalé se apresenta: “Eu sou aquele que os passados anos/ Cantei na minha lira maldizente/ Torpezas do Brasil, vícios e enganos”. Vale-se ainda de outro poeta, Ezra Pound, adaptando seu Canto I (em tradução dos irmãos Campos e Décio Pignatari), para tornar a alertar que o morcego continua na porta principal: “Trevas, trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes / Trevas, trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes”.
O rock and roll dá lugar a um samba-canção de gafieira, Buraco da Consolação, com uma orquestra arranjada para soar feito a Tabajara do maestro Severino Araújo. Macalé retoma a morbidez romântica, estética articulada com Waly Salomão em 1973. Faz isto no samba em dueto com Tim Bernardes, e em Obstáculos, também um samba-canção, em que se acompanha ao violão (com o qual já acompanhou muita gente boa): “Entre vidros e cascalhos/entre vidros e vergalhos/vou levando a vida assim”.
Surpresas, situações e soluções sonoras intercalam-se até o final de suas doze faixas.
Da canção meio bluesy Peixe, com as vozes da Macalé e Juçara Marçal, ou um quase sambão,Longo Caminho ao Sol, com Macau e Rômulo Fróes, a guitarra estourada no intro de Limite, um show de interpretação de Macalé, voz de quem está á beira de um ataque de nervos. A canção cortada feito faca por um solo de guitarra estridente. “Não quero que saibam/o valor de minhas canções/se boas ou más pouco me importam/elaborei como meu calor”, os versos com que abre a faixa que fecha o disco, Valor. Macalé confirma que continua com a mesma ânsia de liberdade e inquietude da época de Gotham City.