Eddie lança disco de frevos de letras engajadas

EP com cinco faixas já está circulando na Internet
JOSÉ TELES
Publicado em 06/01/2020 às 11:30
EP com cinco faixas já está circulando na Internet Foto: Foto: Beto Figueroa/Divulgação


O primeiro bebê nascido no Recife em 2020 veio ao mundo aos 20 minutos do dia 1º de janeiro, num hospital da Encruzilhada, e chama-se Daniel Pietro. Já o primeiro disco da música pernambucana chegou às plataformas de música para streaming também nos minutos iniciais do dia 1º de janeiro, foi batizado de Atiça, e é mais um filho da Eddie, banda olindense que completou três décadas de estrada em 2019. Na verdade é um inusitado caso de gêmeos com quatro meses de diferença na idade entre si.

Atiça, com cinco faixas, não é exatamente um EP, mas o lado A do oitavo álbum do grupo, cujo lado B só chega ao público em abril, digital e em vinil: “Com a música digital a gente pode fazer as coisas diferentes. Queria aproveitar o fato de estas músicas terem mais a ver com a época atual, não só o Carnaval, mas a época que a gente vive”, comenta Fábio Trummer, guitarrista, principal vocalista e fundador da Eddie. Formado por Trummer (voz e guitarras), Alexandre Urêa (percussão e voz), Andre Oliveira (trompete, teclados e sampler), Rob Meira (baixo) e Kiko Meira (bateria), a Eddie contou com algumas participações especiais, a pianista e cantora Sofia Freire, e a Orquestra Henrique Dias, com arranjos do trombonista Babá.

Das cinco faixas, uma não é autoral, Na Veia, pinçada do álbum Palhaço do Circo sem Futuro, do Cordel do Fogo Encantado (2002). Com participação de Sofia Freire, começa meio frevo de bloco, para acelerar para o frevo canção. A sonoridade é caótica, vozes e instrumentos dispersos, como quando a troça desce as ladeiras olindenses. Duas tendências recentes na músicas pernambucana, mais precisamente no frevo. Há 25 anos, o gênero estava em baixa. Claro, continuava sendo a música do Carnaval pernambucano, porém não era mais o donatário da capitania hereditária, dividia espaços com a axé music e os mais diversos estilos que se tocavam nas caixas de som nas ruas de Olinda.

A geração do manguebeat não era muito de frevo, embora o tenha apreendido por osmose: cresceu escutando Claudionor Germano, cantando Capiba, ou Nelson Ferreira. Poucos grupos e artistas de então assumiam a influência. O Sheik Tosado foi dos poucos a ousar turbinar frevo com hardcore (no disco de estreia).

“A gente da Eddie, desde o primeiro disco brincava com frevo, mas não fazia um frevo como as orquestras, porque não tinha o conhecimento necessário. A gente fazia um frevo de rua, mais como uma referência, enquanto os músicos de frevo tinham todo um conhecimento técnico, estudavam música. Uma vez conversei com Chico Science em Maracaípe, ia fazer um show no campeonato de surfe, mas ele chegou uns dias antes. Chico comentou comigo das coisas que estava pensando pra dar continuidade ao trabalho dele, falou do frevo. Dizia que é uma música que puxa pra frente, experimenta com os baixos de reggae, que são ao contrário, que seguram, está sempre atrasando a nota. Cantarolou um pouco, fazendo música de beatbox. Isto aconteceu em 1997, 98. Era uma coisa que ele já vinha pensando e trabalhando pra fazer. O mangue mostrou pra gente a cultura pernambucana. O frevo com a energia da roda de pogo, a gente procurando uma alternativa olindense”, conta Fábio Trummer.

Há 25 anos, o frevo estava distanciado das juventude que, afinal, é o grosso da massa que brinca carnaval. Havia resistência dos puristas à inovações no gênero, quase não lançavam mais frevos novos. O disco que continuava na lista dos mais vendidos em 1994 era Capiba 25 Anos de Frevo, gravado na Rozenblit em 1959, com Claudionor Germano como intérprete. A partir de 2007, quando se convencionou que aquele seria o ano do centenário do frevo, o gênero foi reavaliado. A orquestra do maestro Spok inovou tornando todos os músicos solistas.

É emblemático que Spok tenha tocado em dois shows antológicos de Chico Science & Nação Zumbi, no lançamento de Afrociberdelia, no Clube Português, e na última participação de Chico Science com o Nação Zumbi, no Abril Pro Rock, em 1996 (que teve canja de Gilberto Gil). Daí em diante vale tudo. Mônica Feijó fez o frevo para ouvir deitado, o Maestro Forró fez uma salada à pernambucana, juntado frevo com expressões da cultura popular da periferia, o próprio Spok com DJ Dolores e Yuri Queiroga ousaram frevos eletrônicos. Os exemplos são muitos.

Atiça, enfatiza Fábio Trummer, foi realizado com a intenção de ser cantado na rua. Nada melhor para isso do que a Orquestra Henrique Dias, o coro, a orquestra, a caixa rufando em moto-contínuo, é a cara de Olinda, quase que dá para sentir o mau cheiro que emana das paredes dos becos do sítio histórico durante a folia.

POLÍTICA

Um carnaval que se brinca sem esquecer que a quarta-feira de cinzas logo chegará. O alerta em meio à folia, explicitado na letra de Atiça, a mais enfática do disco: “Essa dor que a gente sente/Amargor envenenado/Essa dor que a gente sente/Essa dor bairronovense/Tá doendo em Santiago/Essa dor que a gente sente/Destroça, arranca, agarra, atiça a dor/Perdidas, as balas vão voar/O medo, a vida, a lida, outra ferida/ A marca do pavor/Projéteis ricochetear”.

Nas demais letras o momento atual é recorrente. Soa até irônico o apito, característico do frevo de bloco, em Aurora dos Novos Tempos. Este frevo canta um futuro diferente do presente: “A manhã repleta de todas as cores/Aurora dos novos tempos/Dançarei ao som do mar/Amanhã”. A inclusão de Na Veia (Lira/Emerson Calado) é explicada por Trummer: “Fiz, a pedido da produção do Cordel, um vídeo tocando uma música deles, pra usarem antes de sair o último disco que fizeram. Daí fiquei com ela na cabeça. Pensei que o Cordel, apesar da seu reconhecimento grande, não tem muitas regravações. E achei que ela se encaixaria ao nosso trabalho. E convidamos a Sofia Freire pra cantar com a gente nela. Pra suavizar, de certa forma, a canção e assim mostrar a poesia de Lirinha por outro angulo”.

Banda de público certo e sabido, a Eddie segue a máxima do irlandês Van Morrison, para quem é melhor ser cult do que uma megastrela. Cult é para sempre. “Desde o início nossa intenção foi essa, sempre cativamos o nosso público. Sei que nossa música não é pra massa, com uma ou outra popular. Temos que olhar para a fatia do bolo que nos pertence, mas a gente ainda não tem o bolo inteiro. A carreira do músico é isso, feita de erros e acertos”.

E erros ele aponta nos órgãos de cultura em relação ao segmento menos popularesco da música pernambucana, ausente da progamação de final de ano da capital: “Os gestores não entendem que a gente movimenta o mercado produtivo. O movimento mangue criou toda uma geração de técnicos, iluminadores, produtores, é um potencial econômico negligenciado”. Especificamente à programação da virada da recente irada de ano é acidamente crítico: “Agora esta coisa de apropriar o brega como comissão de frente da nossa música. Nada contra quem faz, mas é uma afronta a uma tradição do Recife como uma cidade que tem sua música admirada pelo Brasil, tão legítima quanto qualquer outra, com uma vocação cultural que deu Nação Zumbi, e está aí com muita gente nova, muito boa, Sofia Freire, Flaira Ferro, Almério, e muito mais”

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