Com Velho Chico, Luiz Fernando Carvalho leva suas raízes nordestinas para a TV

Em conversa exclusiva, o diretor fala de suas memórias e do Brasil que pretende revelar na televisão
Adriana Victor
Publicado em 02/04/2016 às 7:00
Foto: Caiuá Franco/Globo/Divulgação


Luiz Fernando Carvalho de Almeida, hoje regente de novela de brilho em horário nobre, não por acaso, escolheu usar o seu primeiro sobrenome para identificar-se no meio artístico. Mais do que identidade, a escolha consciente é também homenagem: Glícia Carvalho, sua mãe, nascida em Alagoas, morreu quando o diretor artístico de Velho Chico  tinha 3 três anos.

As rodas de São Gonçalo, as procissões e bandeiras de santos, as feiras, os cantadores de viola, as rendas, o vigor do Rio São Francisco, a luz solar do Nordeste, o esmero e a beleza dedicados por Luiz a cada detalhe de cena da novela que enche os olhos do Brasil, consciente ou inconscientemente, passam pela alagoana Glícia – mesmo que o País saiba pouco ou nada sobre ela.

Certa tarde, nos anos 1990, em conversa no Recife com o escritor Ariano Suassuna, o diretor foi perguntado: quantas imagens ele guardava da mãe? Eram três, nada mais. (A ‘riqueza’ de Ariano, ali, foi maior: guardara cinco recordações visuais de seu pai, assassinado quando ele também tinha 3 anos). 

A conversa acendeu uma centelha e serviu de impulso para que Luiz seguisse a lavrar as suas próprias memórias, levando-o a palmilhar, por gosto e necessidade, o seu passado. “Fui até o Nordeste, na região onde a minha mãe passou a infância e conheci Maceió, que eu ainda não conhecia.” Levou como companhia Bia, aquela que tinha sido a babá de sua mãe. Conversou com a família, cascavilhou a sua gênese – como se buscasse resgatar um tempo perdido e também a si mesmo. 

“Paralelamente ao conhecimento de minha mãe, fui, sem ter essa consciência, promovendo também um conhecimento da cultura brasileira, em especial a do Nordeste”, confessou, após as filmagens de seu longa-metragem Lavoura Arcaica (2001).

BRASIL

“Um resgate de brasilidade.” É assim que a Rede Globo vende a novela em horário nobre. Luiz Fernando, ao imprimir alma e beleza à tela, está mexendo com parte dos telespectadores, unindo, à sua maneira, pedaços de um País – por ora especialmente revolvido. “Voltei a ver novela”, é frase recorrente dos que se encantam com o que é exibido hoje na TV aberta. Encantamento é uma coisa, audiência é outra – mas, registre-se: Velho Chico cravou a maior audiência em estreias da emissora, na faixa das 21h, desde 2014. 

Há, na novela, algumas unanimidades: a música como protagonista, pontuando cada uma das cenas (Maria Bethânia cantando Mortal Loucura, poema de Gregório de Matos, é um punhal afiado nos sentidos, ave!); a luz trabalhada magistralmente, reforçando o diálogo entre claros e escuros; a cenografia e o figurino, ambos criados com minúcia e devoção, guiando a narrativa estética em casamento harmonioso. 

A interpretação do corpo de atores vem recebendo, justamente, muitos louros – visceral, como quase tudo o que leva a marca do diretor. “Aceitei fazer esta novela por causa do Luiz”, afirmou, sem rodeios, o ator Rodrigo Santoro, que não atuava em novelas havia 10 anos.

A atriz Camila Pitanga (a Maria Tereza da terceira parte da trama) afirmou que o processo criativo proposto pelo diretor fez com que ela saísse “desse modo de atuação quase autômato e focado para o resultado. Está sendo desafiador querer me reinventar, falar de um outro lugar”.

ENTREVISTA

Carioca, nascido em 1960, Luiz Fernando Carvalho assina mais de 20 produções da Rede Globo, entre séries e novelas, incluindo Pedra Sobre Pedra (1992), Renascer (1993), Irmãos Coragem (1995), O Rei do Gado (1996) e Meu Pedacinho de Chão (2014).

Conheci Luiz no final dos anos 1990, apresentada por Ariano Suassuna, amigo em comum. Pude assistir a duas gravações de suas produções nacionais: no Rio de Janeiro, em 2005, ele comandou a primeira (e bela) versão de Hoje É Dia de Maria; em 2006, em Taperoá, Sertão da Paraíba, dirigiu a microssérie A Pedra do Reino, baseada na obra maior de Ariano. Antes disso, em 2000, trabalhamos juntos no especial de Carnaval Folia Geral, feito para a Rede Globo Nordeste (e também com Ariano).

Nesta conversa travada por mensagem eletrônica, Luiz Fernando respondeu às perguntas, com exclusividade, em meio às gravações de Velho Chico. Falou da memória materna, de música, do Brasil em constante processo de redescobrimento. As respostas chegaram nas primeiras horas da madrugada, entre um sábado e um domingo. “Desculpe a demora. Mas como você deve saber, estava sem tempo algum”, justificou-se.

- Existe a intenção de revelar um Brasil ainda oculto em Velho Chico? Se sim, que personalidade e características ajudam a formar esse Brasil?

A sensação que tenho é que o país, apesar de todos os avanços, necessita ser sempre redescoberto. Seu espírito muitas vezes eclipsado não se revela através de um retrato fácil e monolítico, algo que o passado tenha registrado e nos seja visto como definitivo, pronto. Tudo está em eterno movimento. Isso traz contradições e muita vida. Penso na frase de Guimarães Rosa: “O Brasil é indizível”. Na novela, esta reaproximação com a brasilidade vai desde uma paisagem que não está ali apenas como cartão postal, mas sim como território dramático, onde o interior dos personagens se reflete naquela geografia, indo até às coordenadas culturais, o uso e os costumes do povo. Tudo se espelha e se completa traduzindo um mundo de invenção e memória que se traduz na fabulação. Então, no fundo, estou falando do caráter ético de uma representação que não passa de um conjunto de tentativas. As tentativas continuam me interessando e, nos acasos bons do tempo, me revelando coisas de meu país. 

- Você é filho de alagoana, certo? Existe uma alma nordestina da qual não se separa? Você traz ela dentro de si?

As coordenadas fundamentais de meu trabalho partem desta relação espiritual com a memória de minha mãe nordestina, a qual perdi muito menino, ainda na primeira infância. Tudo nasce desta nuvem de lembranças. Digo nuvem também me utilizando do sentido tecnológico que a palavra representa nos dias de hoje, onde os conteúdos são armazenados, mas não é possível avista-los, permanecendo invisíveis. Estou plugado à esta nuvem espiritual. Ela me guia e isso é tudo.

Caiuá Franco/Globo/Divulgação
Luiz Fernando Carvalho orienta Rodrigo Santoro nas gravações - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Belmiro (Chico Diaz) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Embate entre Coronel Jacinto Saruê (Tarcísio Meira) e Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Marina Nery e Luiz Fernando Carvalho - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Marina Nery, Luiz Fernando Carvalho e Rodrigo Santoro - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Aracaçu (Carlos Betão) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Eulália (Fabiula Nascimento) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Encarnação (Selma Egrei) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Leonor (Mariana Nery) e Afrânio (Rodrigo Santoro) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Eulália (Fabiula Nascimento) e Ernesto (Rodrigo Lombardi) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Maria Tereza (Julia Dalavia) e Santo (Renato Góes) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Leonor (Marina Nery) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Coronel Jacinto (Tarcísio Meira) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Dr. Emilio (Leopoldo Pacheco) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Clemente (Julio Machado) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Afrânio (Rodrigo Santoro) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Afrânio (Rodrigo Santoro) e Clemente (Julio Machado) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Aracaçu (Carlos Betão) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Padre Romão (Umberto Magnani) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Doninha (Barbara Reis) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Afrânio (Rodrigo Santoro) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Avelino (Xangai) e Edígio (Maciel Melo) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Belmiro (Chico Diaz) e Ernesto (Rodrigo Lombardi) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
Paulo Belote/Globo/Divulgação
Cortejo fúnebre do Coronel Jacinto - Paulo Belote/Globo/Divulgação
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Piedade (Cyria Coentro) e Belmiro (Chico Diaz) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Afrânio (Rodrigo Santoro) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Afrânio (Rodrigo Santoro) e Leonor (Marina Nery) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Casamento de Leonor e Afrânio - Caiuá Franco/Globo/Divulgação
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Iolanda (Carol Castro) - Caiuá Franco/Globo/Divulgação

 

- Você é essencialmente ligado à literatura, revela isso em sua criação artística. Deve, certamente, ter lido muito a respeito do São Francisco e de suas histórias antes de chegar à direção da novela. O que, apesar de tudo, ainda o surpreendeu?

Na verdade o que continua me surpreendendo cada vez mais é a riqueza da oralidade popular. Tenho pesquisado a cultura ribeirinha e registrado cantos de trabalho, entre outras manifestações que pensei nunca mais encontrar. Sei também que muita poesia de boa qualidade tem sido produzida à margem deste imenso rio que cruza o país. Muitas viram canções, é certo. Mas muitas só chegam ao papel através de pequeninas editoras independentes. Nas margens do São Francisco há um mar de poetas, gente que, infelizmente, não ganha reconhecimento ou mesmo acesso às editoras importantes do país.

- Você tinha um sonho de levar A História de Amor de Fernando e Isaura, de Ariano - cujo personagem principal é o rio - para as telas. O sonho permanece, mesmo com este mergulho em Velho Chico? Por quê?

Sim, permanece. Trata-se de uma primeira tentativa apaixonada de Ariano sobre a prosa romanesca, de passar do teatro e da poesia à prosa. Pretendo retomar o trabalho com o texto ao final de Velho Chico.

- A música ocupa lugar especial em suas criações. Quem você quer que o Brasil ouça e passe a admirar depois de assistir à novela?

Quase não consigo te responder essa. A novela traz muitos talentos musicais. Mas pensando em uma escala nacional, popular, de alguém que, apesar dos anos de estrada, não tem ainda essa dimensão popular imensa que as novelas trazem, e que eu adoraria que tocasse nas rádios, te respondo um nome só: Tom Zé.

- Onde poderemos enxergar Pernambuco em Velho Chico

Velho Chico é uma geografia de ficção onde sertões de vários estados brasileiros se espelham, se misturam e contribuem com seu espírito particular na construção da fabulação. É um universo que fica quase impossível dizer e separar: isto é sertão de Pernambuco, isto é o de Alagoas, ou aquele é na Paraíba e assim por diante. Como diz Guimarães Rosa: “Sertão é aqui dentro”.  

- O Brasil precisa a voltar a criar laços próprios de identidade? Se sim, com a sua criação  e arte, você espera colaborar com isso? De que forma?

Continuo interessado nos vetores míticos do país, numa espécie de escavação, em uma perspectiva histórica e ao mesmo tempo lúdica. Sei que na televisão isto é muito difícil e delicado, mas, sinceramente, esta é a tentativa: tocar nas contradições arquetípicas do país, nas coordenadas sociais e humanas que nos trouxeram até aqui. Lembro-me daquela reflexão Viscontiana: “Ao nos colocarmos diante da beleza, nos deparamos com a Morte”. Sinto estas forças contraditórias quanto mais pesquiso a tal brasilidade. Não há refúgio. Ela é indizível, não tem apenas uma cara ou um nome. Somos multifacetados. Onde quer que se esteja, qualquer região, perceberemos sempre o espírito barroco dos contrários, das volutas nos elevando e nos soterrando. Somos um país profundo.

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