Shows cancelados, financiamentos suspensos. Os artistas no Brasil denunciam ser alvo de uma censura em meio à "guerra cultural" impulsionada pelo presidente Jair Bolsonaro, um fenômeno que afeta principalmente as produções com temática LGBT.
"Sabíamos que a chegada ao poder de Bolsonaro (em janeiro) seria um giro dramático, mas nem nos meus piores pesadelos, teria imaginado que seria tão terrível", diz à AFP Artur Luanda Ribeiro, da companhia de teatro gestual Dos à Deux, fundada em 1998 em Paris e instalada no Brasil desde 2015.
De acordo com a companhia, a obra "Gritos" (2016), em que Ribeiro interpreta um transsexual, foi retirada na semana passada da programação do teatro da Caixa em Brasília.
Em um e-mail enviado à AFP, a Caixa informou que a companhia havia oferecido a exibição de dois espetáculos, "Gritos" e "Aux Pieds de la lettre" (2001), e que o teatro escolheu apenas o último, sem explicar o motivo.
Com seu companheiro, André Curti, com quem cria todos os espetáculos, Ribeiro teme que qualquer novo projeto que a companhia apresente sofra com as mesmas decisões.
"Temos medo de que a companhia seja fichada. Eles bem podem dizer: 'Dos à deux', não", afirma.
"Trabalhei durante a ditadura militar no começo dos anos 1980 e lembro que os censores assistiam aos ensaios e nos interrompiam, dizendo: 'isso, não'. A diferença agora é que (a censura) está oculta, subentendida", acrescentou Curti.
Bolsonaro nega que pratique a censura, embora insista na necessidade de aplicar "filtros" nas subvenções destinadas a projetos culturais.
"Eu não vou fazer apologia a filtros culturais. Para mim, isso tem nome: é censura. Se eu estiver nesse cargo e me calar, vou consentir com a censura. Não vou bater palma para este tipo de coisa. Eu estou desempregado. Para ficar e bater palma pra censura, eu prefiro cair fora", disse Henrique Pires, ex-secretário especial de Cultura do governo, que deixou o cargo no fim de agosto.
Seu posto equivalia ao de ministro da Cultura, uma pasta que foi extinta pelo atual governo e absorvida pelo ministério da Cidadania, no mesmo nível que a de Esportes.
Para Pires, a gota d'água foi a suspensão de um edital para financiar projetos de séries para a TV pública, em que quatro finalistas abordavam temáticas LGBT.
Em 15 de agosto, durante uma transmissão pelo Facebook Live, o próprio Bolsonaro enumerou os projetos que seriam afetados, lendo a sinopse com um sorriso de ironia.
"O filme é sobre uma ex-freira lésbica", disse. "Confesso que não entendi por que gastar dinheiro público, no que isso pode agregar no tocante à nossa cultura, às nossas tradições. Não estou perseguindo ninguém, cada um faz o que bem entender com seu corpo, mas gastar dinheiro publico para fazer esse tipo de filme...", disse antes de descartar a folha de papel.
"Mais um que vai para o lixo", acrescentou.
Bolsonaro se referia a "Religare Queer", que trata da presença de homossexuais entre os fiéis das grandes religiões "tradicionalmente homofóbicas".
Seu roteirista, Kiko Goifman, ficou indignado com a medida. "Fomos cortados por um gesto completamente arbitrário", afirmou. "A gente entende [isso] como um ato de censura".
Goifman também é codiretor do filme "Bixa Travesty", que ganhou o Teddy Award, prêmio concedido às produções LGBT do Festival de Berlim, mas que não pôde ser distribuído no Brasil apesar de já ter estreado em mais de 25 cidades da França.
Em 2018, a produção ganhou um prêmio de 200.000 reais da Petrobras para cobrir os custos de distribuição, conta Goifman.
"Um belo dia estou em casa, toca meu telefone, e recebo uma ligação da Petrobras falando que não vão pagar. Falaram que não iam pagar, mais nada", contou.
Consultada pela AFP, a Petrobras atribuiu esta decisão a uma reformulação na estratégia de patrocínios culturais.
Goifmann recorreu à Justiça para reverter a decisão e, enquanto espera uma decisão favorável, diz se sentir amordaçado porque considera que tudo o que disser pode ser usado contra ele no processo.
Enquanto as produções LGBT são castigadas pela censura, outros círculos culturais esperam que ocorra o mesmo.
Felipe Haiut, comediante e roteirista, também expressa seus temores: "Sempre que vou ter uma ideia, vou ter que pensar se aquilo pode vir a ser vetado ou não, se vou ser atacado online, se vou conseguir recursos para aquilo...", comenta. "As empresas estão com medo agora, porque o governo está em cima. Não pode acontecer, as empresas não podem se sentir acuadas. Estamos vivendo uma guerra cultural.".