Se 2019 não foi um ano fácil para os que acreditam no avanço das políticas públicas culturais, a esperança que 2020 seria de melhoras já perdeu um pouco de sua força. Na última quarta-feira (8), as cinco exonerações de funcionários da Fundação Casa de Rui Barbosa, uma das instituições de acervo e pesquisa mais importantes do País, surpreendeu a todos. Inclusive aos próprios exonerados, que só souberam da notícia através do Diário Oficial da União (DOU). Foram afastados a crítica literária Flora Süssekind, a jornalista Joëlle Rouchou e o sociólogo pernambucano José Almino de Alencar, respectivamente, das diretorias dos Centros de Pesquisa em Filologia, de História e o Ruiano (dedicado à memória do patrono da fundação). Antonio Herculano Lopes, diretor do Centro de Pesquisa, e Charles Gomes, chefe do Centro de Pesquisa em Direito, também deixaram as funções.
É importante ressaltar que os chefes dos centros não foram demitidos, eles permanecem como pesquisadores da Casa, mas perderam os cargos de chefia. A decisão foi validada pela presidente da instituição, a jornalista e roteirista de TV Letícia Dornelles. Ela assumiu o cargo em outubro do ano passado, no lugar de Lucia Maria Velloso de Oliveira, que estava como interina desde o afastamento, em 2018, de Marta de Senna. Na ocasião, a chegada de Letícia foi criticada pelo fato de ela não ter uma carreira acadêmica ou títulos como de mestre ou doutora. “Não cheguei no mundo da cultura ontem. Eu trabalhei no Fantástico. Tenho curso de gestora. Para ser gestora não precisa ser PhD em Museologia, mas estar atenta ao dinheiro público”, afirmou em entrevista ao jornal O Globo.
José Almino de Alencar, sociólogo e escritor que já presidiu a Casa de Rui Barbosa por oito anos demonstrou apreensão com a possível descontinuidade de alguns projetos. “Essa medida tem importância não pelas demissões em si, isso pode acontecer, mas é que foram exonerados todos os chefes do Centro de Pesquisa. Temos várias frentes de atuação, desde recuperação física da própria casa, dos arquivos, quanto a organização de seminários, pesquisas, publicações de artigos. E, mais recentemente, abrimos um mestrado profissional voltado sobretudo para arquivistas e museólogos que já está na terceira turma.”
Sobre as ações da Fundação encabeçadas por Letícia, José Almino avalia que parece não haver um propósito de programação, uma linha de atuação. Desde que assumiu a presidência, ela já organizou eventos sobre astrologia e anunciou no dia seguinte às exonerações um ciclo de debates sobre as administrações da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do ex-presidente americano Ronald Reagan, dentro da programação da iniciativa Países & Personalidades.
“Ela sempre dizia que sabia que muitas pessoas da Casa de Rui Barbosa eram de corrente contrárias ao atual governo, mas que isso não era um problema, dando sinais de que havia o espírito colaborativo”, afirmou o sociólogo. Os alunos e ex-alunos do mestrado se mobilizaram em um abaixo-assinado online que já reúne 20 mil assinaturas. “A exoneração desse corpo de profissionais demonstra que a atual presidente não está preocupada com a continuidade do trabalho sério voltado à população, deixando claro seu despreparo para assumir tal cargo de altíssima importância. Além disso, revela seu desprezo pela pesquisa científica e pela preservação e organização de documentos históricos”, diz o texto elaborado pelos pesquisadores.
Outra movimentação de repúdio foi divulgada ontem, em carta assinada por diversas associações científicas, como a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia (Anpepp), entre outras. Na avaliação de José Almino, esta grande repercussão nacional se dá justamente por ser mais uma ação de retrocesso no incentivo à pesquisa das que vêm ocorrendo nos últimos 12 meses. “Tem esse aspecto catártico. Sem falar que estamos há anos sem novos concursos para pesquisadores”, acrescenta.
Atualmente vinculada ao Ministério do Turismo, a Fundação Casa de Rui Barbosa fica localizada no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, na casa onde morou o jurista Ruy Barbosa no início do século 20, e existe desde 1924. Dividida em 3 centros principais -–o Administrativo, de Pesquisa e o de Memória e Informação –, a Fundação é internacionalmente conhecida pelo seu extenso acervo do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), criado no início dos anos 1970 com objetivo de preservar a memória literária de escritores brasileiros. Cerca de 130 arquivos privados compõem hoje o AMLB, dentre eles os de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Vinícius de Morais e João Cabral de Melo Neto.
“O acervo é muito importante, ele está disponível para consulta por parte da sociedade civil. E nosso próprio setor de pesquisa recorre bastante a ele, interage com o mundo acadêmico e repercute as pesquisas realizadas a partir da documentação”, ressalta José Almino. Há também a Biblioteca Rui Barbosa – composta por 23 mil títulos, em 37 mil volumes, todos que o político reuniu ao longo de sua vida –, a casa-museu e o jardim, que atraem visitantes em todas as épocas do ano.