A Rua Leúcio Marquês de Almeida, uma ladeira estreita do bairro de Guadalupe, em Olinda, inicia sua rotina diária diante do fiteiro do Sr. João Guedes. No auge de seus 91 anos, ele atribui a motivação para levantar todos os dias à forma como aproveitou a vida: casou duas vezes, teve nove filhos, conheceu três países. Aposentado aos 40 anos por tempo de contribuição como metalúrgico, hoje vive com R$ 954 mensais, o piso da Previdência Social. Com a mesma frequência, vêm as contas de aluguel, feira e remédios. Para esse quase centenário, a barraquinha azul não é passatempo, mas necessidade.
LEIA TAMBÉM
» Brasileiro precisa aprender a garantir aposentadoria por conta própria
» Busca por reforma ideal na Previdência acontece em todo o mundo
» ''Não trabalho com a hipótese da não aprovação'', diz secretário da Previdência sobre reforma
Aos 91 anos, João Guedes trabalha no fiteiro próprio para complementar o valor da aposentadoria (Foto: Filipe Jordão/ JC Imagem)
Enquanto ele observa os dias passarem, o País trava uma discussão acalorada sobre a reforma da Previdência. De um lado, o medo de que os aposentados tenham condições de vida ainda mais precárias, do outro, a necessidade de um ajuste que garanta a sustentabilidade do sistema para as próximas gerações. Só até novembro do ano passado, o governo pagou R$ 546,1 bilhões com os benefícios previdenciários, segundo o portal Siga Brasil. Para o futuro, a expectativa é de que os gastos só cresçam, já que a população idosa deve triplicar entre 2010 e 2050, passando de 19,6 milhões para 66,5 milhões. Em 2030, o número absoluto de idosos vai ultrapassar o de pessoas de 0 a 14 anos, contribuindo para o desequilíbrio dessa conta.
“A reforma é uma condição necessária para o crescimento do Brasil. O mais urgente é endereçar a dinâmica explosiva da dívida pública. E a Previdência tem um desequilíbrio atroz. É como estar sentado em uma bomba-relógio e ela praticamente já estourou”, comenta o professor de economia do Insper, Roberto Dumas. A preocupação aumenta porque hoje a conta já não fecha. Em 2016, o déficit da Previdência Social chegou a R$ 151,9 bilhões, valor atualizado pelo INPC. Até outubro de 2017, o rombo estava em R$ 156 bilhões, 21,8% maior que no mesmo período do ano anterior. No sistema de repartição simples, como no nosso, é função dos mais novos contribuir para sustentar os aposentados. Hoje, há um idoso com mais de 65 anos para cada 12 pessoas em idade economicamente ativa. Em 2060, haverá um idoso para cada quatro. Os gastos com aposentadorias, pensões e Benefício de Prestação Continuada (BPC) representaram 54% da despesa do governo em 2016 e 13% do PIB. Em 2026, serão R$ 113 bilhões a mais.
O professor do Departamento de Economia da PUC-SP Carlos Eduardo Carvalho chama atenção para o fato de que ainda há vários problemas adicionais, como a possibilidade de uma pessoa se aposentar muito cedo por tempo de contribuição, regimes especiais muito caros, em especial para os servidores públicos e militares, e o emprego formal no setor privado muito sensível a flutuações da atividade econômica. Para se ter uma ideia, o governo desembolsou R$ 78,5 bilhões, corrigidos pela inflação oficial, para pagar o déficit de servidores públicos e militares em 2016.
Os efeitos da concessão de benefícios mais generosos para alguns grupos e da transição demográfica são antigos motivos de preocupação para o País. Ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a proposta de uma idade mínima para se aposentar foi derrotada no Congresso, sendo aprovado o conhecido fator previdenciário – uma forma paliativa contra a aposentadoria precoce. No início da gestão do PT, com Lula, o foco foi no funcionalismo público, que passou a contar com um teto para os servidores federais e estaduais. Na sequência, com Dilma Rousseff, as mudanças vieram através da regra 85/95, que leva em conta tanto o tempo de contribuição quanto a idade.
No dia 19 de fevereiro, a mais nova reforma, proposta pela gestão de Michel Temer, deve ser votada pelo Congresso depois de ser modificada três vezes e adiada pelo temor do governo de não ter votos suficientes para aprovação.
No regime geral, será possível se aposentar com idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres e pelo menos 15 anos de contribuição. Já o trabalhador rural precisará comprovar que trabalhou por 15 anos e foram mantidas as regras atuais de idade. O valor da pensão por morte ficará limitado a dois salários mínimos para quem acumular pensão e aposentadoria e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) permanece vinculado ao valor do salário mínimo e sem alteração na idade para inscrição. Ainda são discutidas alterações para funcionários públicos federais que ingressaram no serviço antes de 2003. Com as mudanças, a economia prevista na proposta original passou de R$ 800 milhões em dez anos para cerca de R$ 500 milhões no mesmo período.
Os militares seguem fora da proposta. “O militar não entra na emenda constitucional porque a Previdência militar não é um tema de natureza constitucional. O regime previdenciário dos militares é tratado por meio de lei ordinária. Há estudos a respeito de alteração da Previdência dos militares que são desenvolvidos conjuntamente pelos Ministérios do Planejamento e da Defesa”, afirma o secretário da Previdência, Marcelo Caetano (leia a entrevista completa).
Considerar apenas números em um País sem desigualdades sociais poderia tornar as decisões econômicas mais fáceis. No Brasil, porém, os contrastes são grandes. “A idade mínima não condiz com o tamanho continental do País, diferenças de expectativas de vida entre regiões e questões de empregabilidade. Com 60 anos, já não se consegue mais emprego. Houve alterações para o trabalhador rural e geralmente é o homem que trabalha nessas famílias. Então, vai tirar a contribuição para todos os membros da família”, explica a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Adriane Bramante, referindo-se que pode ficar difícil para os outros membros da família que não sejam o pai comprovarem que trabalharam os mesmos 15 anos mínimos.
Ainda sob o risco de não aprovação, mesmo que a votação seja adiada, os especialistas concordam que mudanças na concessão de benefícios precisam ser mais profundas que as realizadas nas últimas gestões. “Sem a reforma, os gastos futuros ficam imprevisíveis. E isso prejudica a classificação de risco do País. A não aprovação seria muito ruim, uma sinalização ruim para o mercado nacional e internacional”, explica o professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Kaizô Beltrão.
As consequências da reação do mercado às decisões político-econômicas chegam às famílias através do aumento das taxas de juros. Isso acontece porque, assim como os bancos cobram mais caro dos maus pagadores, as agências de risco analisam, com base nas contas do País, a capacidade que ele tem de arcar com seus gastos. Sem contas ajustadas, o Brasil perde pontos nas listas de bons pagadores, e o risco é transformado em juros.
“Mexer na Previdência é financeiramente necessário. Estruturalmente tem que ser mexido. É preciso encontrar um sistema mais justo de distribuição de recursos”, diz o professor de economia da Universidade de Brasília, José Carlos de Oliveira.