Centenas de pescadores bloqueiam, desde a segunda-feira (14), a estrada de ferro que liga o estado Minas Gerais ao Espírito Santo. Eles protestam contra a decisão da Justiça Federal de legitimar um entendimento da mineradora Samarco que afetará a indenização a ser paga aos atingidos da tragédia de Mariana (MG).
O ato ocorre na altura da cidade de Baixo Guandu (ES). Os manifestantes instalaram barracas e afirmam que só deixarão o local após a revisão da decisão. A ferrovia foi escolhida como alvo do protesto porque é operada pela Vale, uma das acionistas da Samarco.
"Não esperávamos essa decisão. Temos um acordo que define o pagamento da indenização. E, de repente, eles arrumam uma liminar que muda as regras", dissee Aurindo Alves, pescador de Linhares (ES). "Está muito difícil. Provocaram uma tragédia nacional e agora não querem arcar com as consequências".
Em nota, a Vale disse que a manifestação causa transtorno a centenas de pessoas que usam diariamente o trem de passageiros. Por conta da interdição, a mineradora decidiu manter a circulação apenas nos dois sentidos entre Belo Horizonte e Governador Valadares (MG), suspendendo o deslocamento pelo Espírito Santo. Pessoas que já tenham adquirido bilhetes poderão reagendar a viagem ou obter o reembolso do valor. Ontem (14), os passageiros chegaram a ser realocados em ônibus alugados pela empresa, mas houve atraso na chegada ao destino final.
"A Vale reforça que a paralisação de ferrovia é crime e coloca em risco a segurança de passageiros, empregados e terceiros. Além de cerca de 2 mil passageiros diários, a estrada é responsável pelo transporte de minério de ferro, combustíveis, grãos, aço entre outros produtos, todos de grande importância para a economia brasileira", acrescenta a nota.
Passados mais de três anos do rompimento da barragem da Samarco, a pesca segue restrita em diversos municípios mineiros e capixabas da bacia do Rio Doce. A maioria dos pescadores ainda não conseguiu retomar integralmente suas atividades profissionais e recebem, todos os meses, um auxílio financeiro emergencial. Conforme o novo entendimento apresentado pela Samarco, e aceito pelo juiz Mário Franco Júnior, em decisão liminar, esses valores poderão agora ser descontados da indenização final.
O auxílio financeiro emergencial é parte do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado em maio de 2016 entre a Samarco, suas acionistas Vale e BHP Billiton, o governo federal e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Ficou acordado que as três mineradoras destinariam os recursos para a reparação de todos os danos e a Fundação Renova seria criada para administrar as ações necessárias. Também foi definido que o Comitê Interfederativo, composto por diversos órgãos públicos e presidido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), estabeleceria as diretrizes para as medidas a serem tomadas e fiscalizaria o cumprimento do acordo.
O valor do auxílio corresponde a um salário mínimo, acrescido de 20% por dependente, somado ao custo de uma cesta básica. Conforme o entendimento que vigorava até então, esse pagamento não tinha natureza indenizatória. Em outubro de 2017, o Comitê Interfederativo publicou a deliberação 119 segundo a qual os valores do auxílio financeiro emergencial não poderiam ser descontados, deduzidos ou abatidos da indenização.
A liminar que altera esse entendimento é do dia 27 de dezembro do ano passado. O juiz Mário Franco Júnior lembra que a indenização final leva em conta tanto os danos morais como as perdas materiais, incluindo-se o lucro cessante, isto é, o cálculo dos lucros que o atingido deixou de ter devido à interrupção de sua atividade produtiva.
"Não há qualquer diferença entre a natureza jurídica do pagamento do auxílio financeiro emergencial e os lucros cessantes, já que ambos, segundo consta do próprio TTAC, se prestam a indenizar (ou compensar) a perda da renda dos atingidos", disse o magistrado, concordando com o argumento da Samarco.
Responsável por representar judicialmente o Comitê Interfederativo, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou lembrando que o TTAC tem artigos diferentes que tratam do auxílio emergencial e da indenização, evidenciando que eles não se confundem. Segundo o juiz, o entendimento não tem amparo no ordenamento jurídico, pois o poder público não poderia impor às mineradoras uma obrigação de viés assistencialista e não indenizatória.
"Não se pode admitir, sob pena de completa subversão da teoria do direito, que o atingido e o poder público venham, por vias transversas, a experimentar um enriquecimento sem causa jurídica idônea", disse o juiz.
O presidente da Colônia de Pescadores de Linhares (ES), Milton Jorge, informou que nesta quarta-feira (16) discutirá o assunto em uma reunião com um promotor do Ministério Público do Trabalho (MPT). "O que desencadeou a manifestação foi a liminar. Mas além disso, há pescador que ainda não está recebendo o auxílio e nem recebeu indenização", disse.
Leonardo Amarante, advogado das colônias que reúnem os 9 mil pescadores atingidos pela tragédia, prepara um recurso a ser apresentado ainda esta semana. Segundo ele, a liminar altera 1,5 mil acordos já firmados. Amarante lamentou ainda que nenhum pescador tenha sido ouvido. "A meu ver, essa decisão é nula porque foi violado o princípio elementar do contraditório", disse.
O advogado disse que há interpretações e decisões judiciais que vão endossar os variados entendimentos em torno da questão. Ainda assim, ele acredita que a decisão será revogada. Em sua visão, houve violação do princípio da honestidade, pois as mineradoras deveriam ter apresentado seu ponto de vista antes de firmar o acordo.
"Não é momento de se discutir isso. Que se discutisse no momento oportuno. Querer alterar tudo agora é complicado. Você não pode picotar um acordo que já foi feito para tirar o que é ruim para a empresa e manter somente o que é bom". Segundo ele, há pontos pactuados que são favoráveis às empresas, como o valor atribuído aos danos morais, que Amarante considera baixo.
Mesmo que o entendimento da Samarco prevaleça, cada pescador terá ainda assim o direito de se negar a fechar o acordo e contestar o cálculo na Justiça. Nesse caso, porém, a decisão final pode demorar. Amarante lembra que há ações movidas por vítimas do naufrágio da embarcação Bateau Mouche, ocorrido na costa do Rio de Janeiro, em 1988, sendo concluídas mais de 30 anos depois.
Segundo ele, a Justiça deveria atuar para proteger o princípio constitucional da dignidade humana. "O perigo na demora atinge mais o pescador do que a empresa, porque obviamente o bem jurídico da subsistência está acima do bem jurídico do patrimônio de duas das maiores empresas do mundo, me refero à Vale e à BHP Billiton".
O Ministério Público Federal (MPF) informou que recorrerá da decisão. Já o Ibama informou que a questão está sendo analisada pela AGU. Procurada, a Samarco orientou a reportagem a procurar a Fundação Renova, que, por sua vez, informou que está em contato com as lideranças do movimento e encaminhou uma nota dizendo que a decisão não vai alterar o pagamento mensal do auxílio financeiro emergencial e apenas prevê que os valores sejam descontados na parcela anual de lucros cessantes.
"Desde 2015, já foram desembolsados R$ 1,3 bilhão em indenizações e auxílio financeiro emergencial destinados a mais de 26 mil pessoas. A Fundação Renova reafirma que todos os atingidos serão indenizados pela perda de renda comprovada, reiterando o seu compromisso com a integral reparação", diz o texto. Ainda segundo a nota, ninguém precisará devolver valores já pagos referente ao auxílio emergencial. "Até novembro de 2018, foram pagos R$ 1,3 bilhão em auxílios financeiros e indenizações", acrescenta o texto.