Cena Política

O que a democracia pediria antes de apagar as velas de aniversário em um mundo polarizado

Confira a coluna Cena Política desta quarta-feira (3), no aniversário do JC

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Cadastrado por

Igor Maciel

Publicado em 02/04/2024 às 20:00 | Atualizado em 03/04/2024 às 0:08
Análise
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*O JC marca seus 105 anos presenteando você, leitor, com textos especiais olhando para o futuro. Com reflexões de nossa equipe, além de convidados muito especiais, estamos prontos para seguir em frente. Com a força de nossa tradição, o compromisso com nossa comunidade e a disposição de estarmos sempre inovando. Acesse aos demais links do especial ao final desse texto.

O maior inimigo da direita não é a esquerda. O maior inimigo da esquerda não é a direita. Ambos têm o mesmo rival e lutam juntos contra ele: o moderado.

A polarização política que existe no mundo hoje, dentro das principais e maiores democracias do planeta tem a ver com uma crise no entendimento da realidade, muito mais do que com uma falência do sistema democrático.

Há um véu ideológico sobre os verdadeiros problemas do mundo, sobre o que realmente importa, e interessados de ocasião na esquerda mais radical e na extrema-direita aproveitam isso para atacar aquilo que os afasta do poder ilimitado, que é o equilíbrio democrático.

Falência desejada

Essa ideia de falência da democracia, aliás, é o objeto de maior interesse dos autocratas espalhados pelo mundo. E não somente deles. Os populistas, que são autocratas com verniz democrático, ansiando por uma oportunidade de romper com os freios e contrapesos que os limitam, também carregam o maior interesse na ilusão de uma guerra entre esquerda e direita que anime ações populares de uns contra os outros.

Motor de paixão

Guerras, principalmente as ideológicas, cultivam a paixão política, afastam o cidadão comum do entendimento de sua própria condição precária e premiam governantes com adoração e fanatismo. O moderado, seja de direita ou de esquerda, atrapalha esses movimentos. Porque esse moderado questiona e dialoga.

Nas melhores “famílias”

Basta parar um pouco para perceber que, respeitadas as diferenças culturais, jurídicas e político administrativas de cada país, estamos vendo esses acontecimentos se desenrolarem no Brasil como nos EUA, em Portugal, na França, na Itália, na Argentina, entre tantos outras nações antes firmes em suas convicções democráticas.

O processo é sempre o mesmo: crises econômicas (reais ou reforçadas por fake news), cultivadas nas redes sociais em tom de revolta extrema, que acabam com questionamentos sobre a efetividade da democracia.

Por que agora?

Usando o Brasil recente como exemplo, por estarmos mais próximos, qual crise econômica e política brasileira foi mais grave do que o período entre os anos 1980 (pós-ditadura) e início dos anos 1990? Houve um presidente com rejeição estratosférica, outro presidente cassado, um vice-presidente assumindo sem ter a menor noção do que fazer com o cargo que ocupava, e nunca se discutiu crise na democracia ou se questionou a necessidade do sistema democrático.

E por que agora?

O que mudou?

Os EUA tiveram períodos de crise muito mais intensos do que os atuais. A França foi destruída no pós guerra, Portugal enfrentou crises infindáveis, a Argentina arrasta sua crise há décadas.

E por que somente agora surgem tantos questionamentos com a democracia como alvo? Porque a democracia é uma ferramenta dos moderados, sejam eles de esquerda ou de direita. Os moderados dominaram a cena nesses países por muito tempo e a ascensão das redes sociais os prejudicou.

Dificuldade

Moderados precisam dialogar, precisam de tempo e espaço para convencer e incentivar reflexões. É preciso se adaptar ao mundo do Whatsapp, Twitter (ou X), Tik Tok e Instagram, com seus espaços curtos e a velocidade dos feeds acelerados operados por mentes cada vez mais ansiosas e com pouco espaço para pensar.

O moderado não se adaptou bem ao mundo moderno e abriu espaço para os cretinos fundamentais, extremistas de esquerda ou direita.

Extremistas não conversam, gritam. E o grito, a exasperação, o corte seco do insulto é muito melhor adaptável às redes sociais do que o diálogo e a ponderação.

As redes eram as ferramentas que faltavam aos extremistas de esquerda e de direita, porque a batalha deles contra os moderados, e não entre si, é antiga.

Bobbio 1

Em seu livro “Esquerda e Direita”, o escritor Norberto Bobbio faz uma análise sobre isso e conclui que os dois lados extremos dessa polarização são mais dependentes do que rivais.

“Ludovico Geymonat, que sempre se proclamou um extremista (de esquerda), inclusive quando da assim chamada refundação do Partido Comunista Italiano, reuniu certa vez alguns de seus artigos políticos e os intitulou de Contra o Moderantismo”, relata Bobbio. E diz mais: Geymonat reclama nos textos e trata como absurdo que “os moderados renunciaram às transformações sociais da sociedade herdada do fascismo e se satisfizeram com a democracia”.

Bobbio 2

A ideia é perturbadora, porque trata-se de um filósofo da esquerda lamentando que as tendências do povo italiano que havia apoiado Mussolini deveriam ter sido aproveitadas para a implantação de um tipo de regime ditatorial à esquerda, mas os moderados atrapalharam, “satisfeitos com a democracia”.

Bobbio 3

E não é só a esquerda, segundo Bobbio, em uma revista de extrema-direita, chamada Elementos, o jornalista e neofascista Stenio Solinas escreveu: “Nosso drama atual se chama moderantismo. Nosso principal inimigo são os moderados. O moderado é naturalmente democrático”.

Bobbio atual

Bobbio conclui: “Destas duas citações fica bem claro que um extremista de esquerda e um de direita têm em comum a antidemocracia… os extremos se tocam”.

Norberto Bobbio escreveu este livro em 1994, exatamente 30 anos atrás, quando o planeta estava saindo da Guerra Fria e o formato da polarização política era completamente diferente do que temos hoje. 

A análise é atual para mostrar a simbiose entre os dois lados desse falso maniqueísmo com a consequência comum (proposital ou não) de enfraquecer a democracia.

Ontem

O que são os moderados, citados pelos filósofos de esquerda e direita na Itália se não os “isentões” tão criticados por Carlos Bolsonaro durante o governo de seu pai. Lembram disso?

Na época, quando Carlos funcionava como um tipo de guru exótico da estratégia digital do governo, os moderados eram o maior inimigo dele, porque questionavam, discutiam e não obedeciam de imediato às ordens que eram dadas.

Os “isentões” foram, logo no início da gestão bolsonarista, sendo expurgados como traidores. Não por acaso, sobraram no fim os que tentaram dar um golpe.

Hoje

No atual governo, de esquerda, os maiores alvos dos petistas mais poderosos são o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e o ministro da Defesa, José Múcio. Alguém desconfia dos motivos?

O primeiro tem dialogado com o Banco Central e buscado equilibrar as contas do governo para ter poder de articulação com o mercado. Já Múcio agiu como ponte para garantir o entendimento mútuo entre o governo e os militares das Forças Armadas que chegaram, alguns, ao ponto de cogitar um golpe que evitasse a posse do atual presidente.

Múcio e Haddad têm sido gigantes no exercício da democracia, do entendimento entre instituições da República e da pacificação do país. Mas os petistas queriam guerra contra o mercado e uma caça às bruxas contra os militares, nada de diálogo democrático.

Como não tiveram seus desejos de “sangue” atendidos, voltaram as armas para os dois ministros moderados (ou “isentões”).

Adaptação

Os moderados precisam se adaptar às redes e à ansiedade coletiva, precisam se renovar. Os moderados, sejam da esquerda ou da direita, precisam ser opção para o futuro do país, ou mergulharemos nos extremos e em sua cretinice fundamental.

Futuro

Nesta edição de aniversário de 105 anos do moderado Jornal do Commercio, foi proposto que estivessem nestas páginas análises sobre o futuro.

É justo e inteligente, porque comemorar aniversário precisa ser mais olhar para frente e menos para o que passou. Tivéssemos, todos os humanos, a ciência de que somos infinitos, com existências imperecíveis, poderíamos comemorar e planejar com alegria os anos que virão, e não os que já se foram embora como costumamos fazer, com velas em cima de um bolo.

O mundo seria diferente sob essa perspectiva e poderíamos evoluir com muito mais agilidade.

Pedido

Pois se a democracia, do alto de seus quase três milênios, pudesse celebrar e planejar os anos que ainda virão, com bolo e guaraná, certamente fecharia os olhos antes de apagar as velas e faria um pedido sincero não por saúde e paz. Seria um pedido por mais moderação no mundo.

Os dias que virão precisam dos moderados. E que assim seja.

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