Por que a tarifa zero não resolve todos os problemas?
Artigo assinado por Wesley Ferro Nogueira , secretário Executivo do Instituto MDT, discute o tema e mostra que, para o passageiro, a infraestrutura e a tecnologia são mais importantes do que a gratuidade
Por Wesley Ferro Nogueira (*)
Quem atua na área da mobilidade urbana frequentemente se vê diante de algumas opiniões que parecem reproduzir a percepção dominante dentro da sociedade, mas que ao mesmo tempo traduzem um certo desconhecimento da real situação vivida. Uma delas se manifesta com extrema intensidade com a afirmação de que os sistemas de transporte público das cidades são de péssima qualidade, que não atendem adequadamente à população, que os veículos são velhos, que operam sempre lotados, etc. Os usuários tem, seguramente, toda a legitimidade para avaliar negativamente o transporte público, mas também precisavam ter elementos para compreender que o sistema poderia operar em condições bem diferentes da atual se uma série de instrumentos fossem implementados por gestores públicos. O que causa mais estranheza é o fato de que, via de regra, são os não-usuários dos sistemas de transporte público os maiores críticos e quem estabelecem a pior avaliação da operação, reproduzindo esses conceitos dentro da sociedade e reforçando uma defesa da necessidade de mais investimento em soluções que possam atender o transporte individual motorizado em detrimento do que estabelece as premissas de uma mobilidade urbana sustentável.
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Outra questão bastante difundida no debate é a de que a Tarifa Zero seria a solução dos problemas do transporte público, uma vez que haveria, com o fim da cobrança, uma migração natural de usuários de automóveis para o sistema coletivo, o que contribuiria para a redução de carros em circulação e da emissão de poluentes, além de melhorar a segurança viária. Nesse sentido, é impressionante o poder de sedução que o tema Tarifa Zero consegue ter dentro de amplos segmentos da sociedade, indo do ambiente acadêmico a determinados movimentos sociais, passando por estudantes, partidos políticos de esquerda e intelectuais.
Ninguém é maluco de duvidar que a adoção da Tarifa Zero seria um poderoso instrumento para a promoção da inclusão social, que ajudaria a desonerar o orçamento de atuais usuários pagantes dos sistemas de transporte público (segundo dados da FIPE, o comprometimento da renda com o item “transportes”, para a faixa de 1 a 3 salários mínimos, está no patamar de 9,2%, atrás apenas de habitação e alimentação) e, ao mesmo tempo, que iria inserir um enorme contingente de pessoas que está completamente excluído da vida urbana por absoluta incapacidade econômica. Considerando que o transporte público é uma ferramenta importante de indução ao desenvolvimento, reconhece-se que a implantação de um modelo baseado na não cobrança de tarifa contribuiria significativamente para o início de uma transformação social, permitindo que quem se encontra em situação de extrema vulnerabilidade possa exercer o seu direito básico de acesso à cidade, às oportunidades de emprego, aos serviços públicos, à lazer, à cultura e etc. O que se questiona é o fato de que a Tarifa Zero, por si só, não apresenta solução para os problemas estruturais enfrentados pelos sistemas de transporte coletivo, como a inexistência de infraestrutura exclusiva para circulação, a irregular frequência da operação, a dificuldade de acesso a informações como horários, itinerários e linhas, o excesso de passageiros nas horas de pico, o controle social e a ausência de uma gestão pública eficiente.
A expectativa dos usuários do transporte público nem sempre é somente ter tarifa mais barata ou a sua não cobrança (a propósito, documento publicado pela UITP, denominado “Full Free Fare Public Transport: Objectives and Alternatives”, destaca que os usuários priorizam, pela ordem, confiabilidade, pontualidade, frequência, conforto, segurança, cobertura geográfica e valor da tarifa). O passageiro também quer ver reduzido o seu tempo de viagem dentro dos ônibus e, para isso, os veículos precisam ter prioridade dentro do sistema viário. Qual o impacto do ganho com a implantação da Tarifa Zero se os automóveis continuarem com seus privilégios dentro das nossas ruas e avenidas e os ônibus permanecerem presos em intermináveis congestionamentos?
Só com a imposição de políticas de restrição ao uso do transporte individual motorizado, combinada com o investimento na qualificação do transporte público, é que teremos alguma chance de reduzir a participação de automóveis dentro da matriz modal de viagens nas áreas urbanas. A mudança não depende apenas do fim da tarifa, como muitos insistem em defender. Peguemos a experiência da cidade de Tallinn, capital da Estônia, que é a grande referência mundial para os defensores da Tarifa Zero. Após a implantação do projeto na cidade (segundo informações compartilhadas pelo Pesquisador Wojciech Keblowski da Universidade Livre de Bruxelas), houve um incremento de 8% no número de passageiros do transporte público, com redução de apenas 3% nas viagens feitas através de automóveis, mas com uma queda maior nos deslocamentos que eram realizados a pé (5%). Destaca-se que a cidade também investiu em ações para desestímulo ao uso do carro, mas o impacto para a reversão na matriz não foi tão representativo.
Algumas características são semelhantes entre as cidades do mundo que decidiram implantar a Tarifa Zero universal: ou são municípios de pequeno a médio porte, exceção para a própria Tallinn, que conta com quase 500 mil habitantes, além de Luxemburgo (o país), com população de 600 mil pessoas e onde automóveis representavam incríveis 83% das viagens, e também a mais recente experiência de Caucaia na região metropolitana de Fortaleza, com quase 400 mil moradores, ou a dependência da receita tarifária para o financiamento dos sistemas de transporte público não era tão expressiva, ou mesmo a combinação das duas coisas.
O jornalista Daniel Santini fez um belo trabalho de análise e investigação em seu livro “Passe Livre: As posssibilidades da Tarifa Zero contra a distopia da Uberização”. Nessa publicação são destacadas as principais experiências implantadas pelo mundo e ali se confirma que a maior parte dos municípios não é de grande porte e há casos, como Dunquerque/França, com população de 88 mil pessoas, onde a decisão também foi parte de uma estratégia de política pública para a atração de novos moradores. O livro também contabiliza que, antes da pandemia, 14 cidades brasileiras contavam com transporte público sem cobrança de tarifa, sendo que 13 delas possuíam menos de 60 mil habitantes.
Também há uma uniformidade de padrão entre as cidades que adotaram sistemas de não cobrança de passagem dentro do transporte público: na grande maioria, o financiamento do seu custo operacional não dependia de recursos exclusivos da receita tarifária que, em alguns casos, eram bem insignificantes. Em Tallinn, por exemplo, essa receita representava 30% do volume total, em Dunquerque era 12% e em Luxemburgo apenas 3%. Até Paris, onde se discute a possibilidade da implantação de uma Tarifa Zero universal, a receita tarifária responde por apenas 28,5%.
Não há dúvidas de que em cidades menores, onde os sistemas de transporte público operam com frota de ônibus menos expressiva, com poucas linhas, com rede simplificada e, por isso, com custo total mais baixo, haveria condições mais apropriadas para o debate da Tarifa Zero. Se, aliado a isso, ainda há uma ambiência favorável para uma decisão política pela implementação dessa estratégia, além de recursos do orçamento público que poderiam ser alocados para o financiamento integral do sistema, o quadro para uma transformação estaria bem desenhado.
Entretanto, como sabemos, nossa realidade é bem diferente. A grande maioria das cidades do País ainda depende exclusivamente da receita gerada nas catracas para o custeio dos seus sistemas de transporte público coletivo. São Paulo e o Distrito Federal são exceção à regra, pois os aportes de subsídios públicos são volumosos para complementar a arrecadação tarifária de seus sistemas rodoviários que custam, respectivamente, por volta de R$ 8 bilhões e mais de R$ 1 bilhão, e que produzem aproximadamente 50% desse volume total com a venda dos bilhetes.
Imaginando que com a Tarifa Zero haverá aumento de demanda e, por consequência, elevação do custo operacional, como viabilizar a implantação deste projeto em cidades com redes mais complexas e mais caras? Um documento técnico muito interessante foi produzido pela pesquisadora Jennifer Perone da Universidade do Sul da Flórida, denominado originalmente como “Advantages and Disadvantages of Fare-Free Transit Policy”, onde ela faz a apresentação de algumas experiências antigas de Tarifa Zero em cidades americanas, destacando aspectos positivos e negativos de cada projeto. A autora reconhece que sem a cobrança de tarifas o processo de embarque e desembarque dos passageiros ficou mais rápido e as viagens tiveram o tempo reduzido; que foram desmontadas as estruturas de cobrança e fiscalização, no início, e que na maior parte das cidades onde ocorreu a implantação, por serem menores, as comunidades exerceram um papel de melhor controle contra ações transgressoras.
Por outro lado, Perone também chamou a atenção para o fato de que muitas das experiências produziram um aumento da demanda nos sistemas de transporte público, como nas cidades de Austin/Texas, Trenton/New Jersey (16%) e Denver/Colorado (36%), mas que em nenhuma delas houve redução das viagens feitas através de transporte individual motorizado e também foi induzido o desestímulo às viagens curtas que eram feitas através de modais ativos. Em resumo, as frotas tiveram que ser redimensionadas para atender à nova demanda, a oferta foi ampliada e, também, com a mudança do perfil para mais viagens curtas e aumento do tempo dos deslocamentos, os custos dos sistemas aumentaram e mais recursos tiveram que ser alocados para fechar as contas.
Outro aspecto que foi comum em todas as cidades se refere ao fato de que houve a necessidade da alocação de recursos com policiamento e segurança para garantir a integridade física de usuários do sistema e que esse tipo de problema teve impacto muito forte nas finanças das autoridades públicas de transporte. Dessa forma, mesmo com a redução de alguns custos, como o de cobrança e bilhetagem, que não eram significativos, os aumentos que foram gerados a partir da implementação das experiências, a deterioração dos serviços e a insegurança acabaram levando várias cidades a abandonarem esses projetos.
Impressionante, ainda, a informação de que Miami/Florida passou a cobrar uma tarifa social e, com isso, viu os casos de vandalismo no interior dos veículos do transporte público caírem 90%. Especialistas afirmam que a Elasticidade da Tarifa comparativamente à demanda é representada por um coeficiente estabelecido como 0,3. Ou seja, se faz uma projeção da variação da demanda a partir das alterações no valor da tarifa. Assim, se a tarifa sofre uma redução de 50%, estima-se que a demanda deverá aumentar em 15%. Com a implantação da Tarifa Zero a expectativa é de que o crescimento do número de passageiros vai se situar na casa dos 30%.
Dentro dessa lógica, na perspectiva da discussão da Tarifa Zero, o custo financeiro de um sistema de transporte público precisa ser dimensionado não dentro das atuais condições, mas já devidamente incorporado com os valores adicionais introduzidos com o aumento de frota para atender à expectativa de acréscimo da demanda. Então, por exemplo, a cidade de São Paulo precisaria contar não mais com R$ 8 bilhões para o financiamento da sua operação; o DF continuaria precisando dos R$ 1 bilhão e mais um plus. Se a conta já é difícil para fechar no atual patamar, como viabilizar novos recursos para o pagamento de uma fatura mais robusta? Vai se apostar na alternativa dependente exclusivamente de recursos públicos de Municípios já com finanças combalidas, de Estados que se fazem de mortos em relação ao transporte público e da União que desmonta todas as políticas públicas?
Vejo com preocupação a defesa apaixonada que alguns segmentos fazem da Tarifa Zero, como se essa bandeira fosse a solução para todos os problemas de mobilidade urbana, apostando firmemente que a eliminação de tarifas nos sistemas de transporte público vai desencadear um processo automático de migração de usuários de automóveis e de motocicletas para o transporte coletivo. A Tarifa Zero tem que ser pensada como uma estratégia alinhada com as diretrizes e objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), não como uma ação desconectada que se apresenta de forma isolada como costuma aparecer nos argumentos colocados por vários de seus fiéis escudeiros.
Nesse sentido, não consigo compreender a pouca disposição para debater e inserir na agenda todos os outros temas que estão inseridos nesse universo e que apontariam para a qualificação real dos sistemas de transporte público, como: a realização do investimento em infraestrutura exclusiva para a circulação mais rápida dos ônibus e a consequente redução de custos operacionais; a necessidade óbvia da implementação de políticas de desestímulo ao uso do transporte individual motorizado; a promoção de diálogo com a sociedade visando à viabilização de fontes complementares para o financiamento dos sistemas rodoviário e de trilhos; a construção de instâncias de controle social para assegurar a participação efetiva da sociedade na fiscalização e avaliação de desempenho de operadores; a discussão sobre a exigência de avanços na substituição da matriz energética; a participação do Fórum de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana, da ANTP e de outros parceiros na formulação de documentos técnicos para orientar a qualificação dos gestores públicos municipais nos processos de planejamento, fiscalização e governança dos serviços; o fortalecimento da integração intermodal; o investimento na rede de circulação a pé para facilitar o acesso aos sistemas e até mesmo o aprofundamento do debate sobre a criação do Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM), que é uma bandeira que vem sendo defendida pelo Instituto MDT.
Portanto, o debate que se faz urgente é o da qualificação dos sistemas de transporte público e a Tarifa Zero, sozinha, não contribui de forma determinante para avançarmos na direção correta.
* Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel” e é membro suplente do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF.