Uma placa ainda discreta na margem direita da PE-424 indica o caminho para a primeira vinícola instalada no Agreste de Pernambuco. A cerca de dez quilômetros do Centro de Garanhuns, a Vale das Colinas se prepara para abrir as portas ao público no último trimestre deste ano, dando início oficialmente à vitivinicultura de altitude e ao enoturismo na região.
O empreendimento é a vitrine privada de um projeto desenvolvido por três entidades públicas com o objetivo de formar um novo terroir de produção de vinhos no Estado, a exemplo do que ocorreu no Vale do São Francisco, no Sertão, a partir da década de 60.
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Quando comprou a propriedade de 35 hectares em 2013, o médico cearense Michel Moreira Leite só queria um lugar “friozinho” para viver com a família. Depois de fazer um curso básico de enologia, passou a alimentar o sonho de plantar uva e fabricar seus próprios rótulos. Mas não fazia ideia por onde começar diante de um terreno descampado, até então dedicado à criação de animais. “Fui à unidade de Petrolina da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) em busca de me informar se era algo possível”, conta.
Não imaginava que a harmonização de interesses seria tão perfeita. Para sua felicidade, soube que tanto era viável como já estavam sendo dados os primeiros passos do cultivo em Brejão. No município próximo a Garanhuns, pesquisadores da Embrapa e da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (Ufape) testavam o desempenho das uvas viníferas e o seu potencial enológico em um campo experimental do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA).
Partiram da tese de que o solo (arenoso argiloso), a altitude (quase 800 metros acima do nível do mar) e as condições climáticas (temperatura média anual de 20.4°C) seriam favoráveis à nova cultura. Faltava verificar na prática.
Vinificadas as uvas e feitos todos os testes, a primeira degustação ocorreu em 2017. Foi a prova final para chancelar os vinhos elaborados na região como aptos à produção em escala comercial.
De acordo com a especialista, o envelhecimento natural das videiras e ajustes nas épocas de poda e colheita trarão ainda mais qualidade à bebida, aumentando a sua capacidade de guarda. Por enquanto, os vinhos estão classificados como jovens, para consumo em curto período.
“Ficamos felizes com o resultado. Isso porque nossa meta maior é proporcionar uma alternativa econômica para pequenos e médios produtores, associada ao desenvolvimento do turismo regional, uma vez que Garanhuns já tem o apelo do clima e de atrativos culturais”, acrescenta outra das líderes do projeto, a doutora em genética e melhoramento de plantas Patrícia de Souza Leão.
Pioneiro em assumir o desafio, Michel Leite incorporou-se à iniciativa através de um convênio de cooperação técnica. Contribui financeiramente para a sua execução e disponibiliza o parreiral para novos estudos, enquanto recebe suporte científico e capacitação profissional.
Com o conhecimento já acumulado, a Vale das Colinas conseguiu acelerar etapas. Na inauguração, já poderão ser degustados três vinhos, frutos da primeira vindima, ocorrida entre janeiro e fevereiro deste ano. São dois tintos e um branco, respectivamente: Dona Elisa (malbec), Cabana do Vale (cabernet sauvignon) e Dona Cecília (muscat blanc à petits grains). Os rótulos homenageiam as filhas de Michel e o primeiro chalé da família na chácara.
Para os próximos anos, outras variedades estão sendo implantadas, como a syrah (tinta) e a viognier (branca). Serão testadas, ainda, mourvedre e pinot noir (ambas tintas) e riesling (branca). No futuro, espumantes devem se incorporar ao portfólio.
O empreendedor não revela o investimento, mas um estudo de pesquisadores que acompanham o projeto de Brejão e a vinícola desde o início mostra que o custo total por hectare para produção de uva destinada ao processamento na região fica em torno de R$ 172 mil. O montante inclui despesas básicas desde o preparo do solo na implantação até a primeira colheita produtiva no terceiro ano de cultivo. Desconsidera, no entanto, o valor da terra e da captação de água para irrigação, sem a qual a atividade não pode ser viabilizada.
Na safra de estreia da Vale das Colinas, a produção inicial esperada é de cinco mil garrafas, mas o valor de cada rótulo ainda não foi definido. “Nesta colheita, tivemos despesas extra, porque precisamos enviar as uvas em câmaras frias para vinificar em Petrolina. A pandemia atrapalhou os planos de construção da fábrica, que só deve ficar pronta em 2021”, diz Michel. O empresário antecipa que a estrutura também agregará espaço multieventos, restaurante, área de exposições e palco móvel para pequenos shows acústicos.
Até lá, outras atividades serão oferecidas na bela vinícola, que a coluna apresenta em primeira mão. Confira a seguir.
Desde o pórtico de entrada, a Vale das Colinas não deixa a dever em cenário a vinícolas de outras regiões do Brasil e do exterior. Um conjunto de placas indicativas, aliás, apontam a distância e a direção para alguns dos terroirs famosos no mundo que inspiram o empreendimento. Caso do Vale do São Francisco, Serra Gaúcha, Mendoza (Argentina), Vale do Maipo (Chile), Douro (Portugal), Toro (Espanha), Bordeaux (França) e Toscana (Itália).
As referências estão por toda parte, como no caminho pontuado por pinheiros e palmeiras imperiais que leva ao interior da propriedade.
Em meio às videiras, começa a diversão para iniciados ou não na arte do vinho. A cada trecho, estão sinalizadas as castas cultivadas, que permitem distinguir as diferenças básicas entre as uvas, principalmente entre dezembro e janeiro, quando as plantas amadurecem. “Teremos sempre um sommelier para acompanhar os visitantes e explicar as características de cada variedade e dos vinhos a que dão origem”, conta Michel Leite.
Além das influências do clima e do solo na qualidade dos rótulos, o proprietário da Vale das Colinas acredita em outro fator poderoso: a música. Do nascer ao pôr do sol, as parreiras são embaladas por melodias clássicas “para não esquecerem as origens europeias”, brinca Michel. “Mas também há frevo e baião instrumentais, para reforçar as raízes nordestinas”, diverte-se. Tenha ou não efeito sobre o sabor do vinho, a trilha sonora ecoa por todo o espaço e torna a visita ainda mais agradável.
Depois do vinhedo, a próxima etapa do tour será na fábrica, para aprender sobre o processo de vinificação, desde a preparação do mosto e fermentação até o amadurecimento e envase da bebida. Como a estrutura só deve ser concluída em 2021, inicialmente o passeio será “desviado” para a bodega provisória instalada no charmoso chalé principal. É onde ocorre a degustação com vista para as colinas que dão nome à vinícola. Nos dias frios do inverno, a experiência fica mais intimista, em torno da lareira.
Mas a grande área ao ar livre convida mesmo é a passear sem pressa e escolher um dos muitos cantinhos pensados para um piquenique à beira do lago. O reservatório é formado por nascentes da região que deságuam no Rio Mundaú. Além de contribuir para o sistema de irrigação dos parreirais, garante entretenimento até para a criançada, com pedalinhos e o parque natural do entorno. Patos, pavões e pássaros da região são companhias certas por ali.
Dos 35 hectares da propriedade, pelos menos 7 ha abrigam uma reserva ecológica, com espécies nativas, frutíferas e ornamentais. "Já temos mais de duas mil mudas, que incluem ipê amarelo, jacarandá e flamboyant", diz o estudante de agronomia da Ufape Walter Leal, envolvido no empreendimento desde a sua concepção e um dos responsáveis pelo plantio e preservação ambiental.
Os princípios de sustentabilidade baseiam outros aspectos do projeto, que reaproveita água das chuvas e já tem um sistema desenvolvido para o tratamento dos resíduos sólidos. “Queremos minimizar ao máximo o impacto no ecossistema, que é a nossa maior riqueza”, corrobora Michel, cheio de planos para o futuro. Entre eles, a construção de chalés para hospedagem na vinícola e a criação do circuito de enoturismo de Garanhuns. Uma ideia para muitos brindes. Cheers!
Com as bases criadas no projeto de Brejão e a experiência da Vinícola Vale das Colinas, a expectativa agora é consolidar o terroir da região de Garanhuns com novos empreendimentos. “Queremos que outros produtores se entusiasmem com essa possibilidade”, salienta Patrícia de Souza Leão, da Embrapa.
Aos interessados, ela avisa que a instituição está aberta a parcerias, inclusive para avançar no desenvolvimento de novas alternativas de cultivo. Os próximos passos, diz a especialista, incluem o teste de variedades para a produção de suco, cuja adaptação pode ser até mais rápida que a das uvas viníferas. “Estamos esperando financiamento para seguir adiante”, conta.
Em paralelo, também é preciso aperfeiçoar as técnicas de manejo, afirma o professor da Ufape Mairon Moura. “Se conseguirmos reduzir o ciclo produtivo, hoje de até 140 dias, podemos ganhar em qualidade. Trabalhamos, ainda, para diminuir ao máximo o uso de defensivos agrícolas, necessários por causa da alta umidade do ar”, explica.
A despeito dos desafios, ambos os especialistas destacam que a produção de uvas e vinhos em Garanhuns pode diversificar e enriquecer a matriz econômica no campo, hoje focada no cultivo de mandioca, milho e feijão, além da pecuária leiteira.
O potencial de geração de empregos, até 5 por hectare, é outro ganho relevante ressaltado pelos pesquisadores. “Supera a de qualquer outra cultura agrícola”, atesta Patrícia.
Resguardadas as proporções, Garanhuns deve seguir os passos do Vale do São Francisco, que iniciou a vitivinicultura no Estado na década de 60. Hoje, a região produz cerca de 8 milhões de litros de vinho e emprega 5,6 mil trabalhadores (somadas a lavoura e a indústria).
Entre Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, são cinco vinícolas (Adega Bianchetti, Botticelli, Rio Sol, Garziera e Mandacaru), todas dedicadas também ao enoturismo.