Beyoncé ocupa atualmente um posto ímpar no panteão do pop. Nos últimos anos, ela vem se descolando de várias regras da indústria musical - muitas vezes subvertendo-as e, no caminho, criando novos parâmetros. Sua obra caminha para um lugar cada vez mais autoral, ousado e afrocentrado, oferecendo outras possibilidades de representação às narrativas tradicionais (e racistas) da grande mídia. Esses elementos de sua poética encontram o veículo ideal para se manifestarem em Black Is King, álbum visual que lançado nesta sexta-feira (31).
Lançado no ano passado, The Lion King: The Gift é a trilha sonora da versão live action de O Rei Leão, na qual Beyoncé dubla Nala, mas funciona como uma expansão daquele universo, utilizando seus elementos para abordar questões mais amplas, que perpassam raça, gênero e classe. Aclamado pela crítica, o álbum foi recebido com frieza pelo grande público, talvez porque esperavam regravações das músicas imortalizadas no desenho animado.
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A artista no entanto, apresentou outra proposta: uma coleção de canções que celebra a diversidade das culturas da África, com a reunião de músicos de países como Nigéria, África do Sul, Gana e Mali, e também descendentes da diáspora africana, como a própria Beyoncé. Black is King concretiza essa visão da cantora e compositora, ampliando em imagens o já complexo universo sonoro do álbum.
Escrito, dirigido e produzido por Beyoncé, em colaboração com outros criadores de diferentes origens e linguagens, o trabalho adapta a essência de O Rei Leão para uma fábula sobre um jovem separado de sua família, aprendendo a viver em um mundo com encantamentos e perigos reais e subjetivos.
O filme amplia as possibilidades de leitura do desenho/live action ao investir em uma narrativa afrofuturista, que se interessa mais nas evocações poéticas e nas subversões imagéticas do que em seguir à risca a estrutura do clássico.
A ação, conduzida pela música e pelos clipes, é intercalada pelos interludes que também estão presentes no disco, pinçados do filme, mas que ganham outros significados em Black Is King. A história desse jovem não é só a jornada de crescimento do herói, cerne de O Rei Leão, mas uma metáfora, também, da história do povo negro.
O trabalho funciona quase como uma progressão natural de temas que ela já começava a explorar com mais ênfase em Lemonade (2016). Mas, se naquele trabalho as questões de raça e gênero eram articuladas mais a partir de um viés íntimo, a partir das experiências de Beyoncé enquanto uma mulher negra nos EUA, este novo trabalho tem um caráter mais coletivo.
E, aqui, Beyoncé busca decolonizar o pensamento e os símbolos ao inserir referências que ampliam a percepção eurocêntrica que vê a África como um país, ao invés de um continente gigantesco e multicultural. Além de se dedicar ao estudo das culturas africanas, ela se cercou de artistas dos países onde o trabalho foi filmado, que participaram do projeto na frente e por trás das câmeras.
Sobre o trabalho, a artista disse esperar que ele ajude a transformar a visão das pessoas sobre a negritude. "Black Is King significa que preto é majestoso e rico em história, propósito e linhagem", afirmou em uma entrevista recente.
Tecnicamente, o filme é impecável, com imagens incríveis gravadas nos EUA, na África do Sul, Nigéria, entre outras locações. As canções são elevadas e ressignificadas, ganhando novas potências, como em Mood 4 Eva, Nile e Already. A celebração da beleza negra, historicamente negada pelo sistema racista, é um norte da produção, aparecendo como tema direto, como em Brown Skin Girl, com participação de Blue Ivy, filha da cantora e de Jay-Z (também presente no filme), ou indiretamente, através da ênfase na cultura.
Das danças (inspiradíssimas) à moda, passando pela religiosidade e pela música, Black Is King pulsa multiculturalidade. Beyoncé exalta a história que foi legada a ela e seu povo, buscando construir novos referenciais para as novas gerações, como explica em Bigger.
"Estamos lutando por algo maior/ Você nunca vai perder, somos vencedores/ Eu serei as raízes, você será a árvore/ Transmito o fruto que foi dado a mim/ Legado, ah, nós somos partes de algo maior", canta na faixa.
A artista sucede em criar uma obra que não olha para a ancestralidade como algo estático, mas como parte da inovação. E ela o faz agregando. Black Is King conta com participações de artistas envolvidos no álbum e pouco conhecidos pelo grande público, como Yemi Alade, Shatta Wale e Mr. Eazi, e de celebridades, a exemplo de Kelly Rowland, da mãe da artista, Tina Knowles-Lawson, Lupita Nyong'o e Naomi Campbell.
Atualmente em exibição no Disney+ (e parte de um acordo da artista com a empresa estimado em 100 milhões de dólares para a produção de três filmes), Black Is King pode chegar ao Brasil, oficialmente, em novembro, quando o serviço de streaming deve aportar aqui. Para garantir que sua mensagem chegue aos locais que ela celebra no longa-metragem, Beyoncé fez um acordo com emissoras de televisão para que o trabalho seja exibido em dezenas de países africanos.
Black Is King é um capítulo importante na cada vez mais instigante carreira de Beyoncé. Acima de tudo, é um marco para a representatividade e para as mudanças culturais que, lentamente, estão ocorrendo na indústria cultural (e na sociedade, como um todo). As narrativas por tanto tempo silenciadas e usurpadas, não serão mais silenciadas, encontrarão eco e criarão outros futuros possíveis.
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