'Eu Não Sou Afrofuturista': biarritzzz fala sobre novas mídias e pedagogias do meme

O JC conversou com a artista, VJ residente da Batekoo Rec, sobre seu novo projeto, outras temporalidades e fuga de conceitos importados
João Rêgo
Publicado em 27/10/2020 às 17:16
Capa do projeto 'Eu Não Sou Afrofuturista', de biarritzzz Foto: Divulgação


Eu Não Sou Afrofuturista é uma das primeiras empreitadas musicais da multi artista biarritzzz. O projeto é também resultado das suas inquietações e pesquisas acerca do que ela denomina como "Pedagogias do meme".

O álbum sonoro-visual web-specific está hospedado no Pivô Satélite, como parte da exibição digital Os Dias Antes da Quebra, curada pela pesquisadora Diane Lima (e também já nas plataformas digitais). No site, é possível escutar as dez faixas de Eu Não Sou Afrofuturista, que ainda ganhou um show virtual no lançamento da revista Outros Críticos.

A apresentação serve como uma pequena introdução a complexidade do trabalho de biarritzzz. Desde 2014, Web Art, gifs, vídeos, memes, estética glitch, ironia e obsolescência programada se tornam combustíveis para suas improvisações e experimentações sonoras e visuais. Mas não só.

Em vários dos seus projetos, biarritzzz busca contrapor o domínio colonialista do que se convencionou a entender como Internet. Em oposição, ela irá nos propor a genuinidade do ato da criação. Ainda mais quando acompanhado da inventividade nas limitações de recursos, o senso de coletividade e autonomia.

Eu Não Sou Afrofuturista é o que, nas palavras do escritor pan-africanista Amiri Baraka, podemos chamar de tecnologia pós-ocidental.

“Se eu tivesse inventado uma máquina de inscrição de palavras, então teria feito um instrumento onde eu poderia pisar & sentar ou espalhar ou pendurar & usar não apenas meus dedos para fazer palavras expressarem sentimentos mas também cotovelos, pés, cabeça, costas e todos os sons que eu quisesse”, ele escreveu no ensaio Technology & Ethos, de 1969.

Ou talvez nem a visão, à priori norte-americana, de Baraka deem conta do que é o trabalho de biarritzzz. Afinal, o próprio título busca fugir de qualquer inserção importada. “Eu Não Sou Afrofuturista” surge de uma reação a tentativa de enclausura-la na ideia mercadológica de Afrofuturismo, originalmente criado por Mark Dery, um pesquisador branco.

A artista cearense compreende as particularidades das suas vivências e ancestralidade antes de qualquer denominação externa. “Bater nessa tecla da não hierarquização entre as ancestralidades indígenas e africanas, principalmente num contexto Norte e Nordeste no qual nos encontramos” ela ressalta.

biarritzzz é também fruto das intensas (e invisibilizadas) hibridizações entre, não só a cultura afro diaspórica, mas também a dos nossos povos originários. No projeto, ela busca unir influências sonoras de Belém a Recife, tudo abarcado nas suas conceituações sobre processos históricos da Internet.

Foram dessas pesquisas durante a graduação em Ciências Sociais (UFRPE) que desenvolveu seu importante artigo Um Espelho na Nuvem: Leona Assassina Vingativa e a virada dos novos meios de produção de autoimagem. Nele, a artista investiga a autonomia providenciada pela disseminação de tecnologia, e seu impacto em processos de autoimagem subalternas, antes dependentes das grandes mídias.

Em Eu Não Sou Afrofuturista, biarritzzz junta forças a nomes como Henrique Falcão, Novíssimo Edgar, Denise Nuvem, Mun Há, Anti Ribeiro e a prolífica Deize Tigrona. Todos deixando marcas e se deixando influenciar pela sua direção artística.

O JC conversou com a artista, VJ residente da Batekoo Rec, e que hoje vive e realiza a maioria dos seus trabalhos em Pernambuco, sobre Eu Não Sou Afrofuturista, suas pulsões artísticas, novas temporalidades e fuga de conceitos importados.

Jornal do Commercio – Quando surgiu a ideia por trás de Eu Não Sou Afrofuturista, o primeiro estalo do projeto e as inquietações artísticas?

biarritzzz – O título vem de uma inquietação que surgiu no ano passado, justamente na ocasião de uma matéria de um dos jornais daqui em Recife, que se intitulava o “Recife Afrofuturista”, e entrevistava eu e mais dois colegas, no caso o Furmiga (@furmig) e o Mário Bros (@omariobros_).

No processo dessa entrevista, a gente fez e logicamente concordou em fazer na época, mas depois aquilo começou a me fazer questionar porque nós três estávamos sendo colocados ali como “afrofuturistas”, uma vez que nenhum de nós já havia se posicionado dessa forma.

Eu comecei a entender que se tratava de um processo de importação de conceitos. E que se tratava, na verdade, de um fluxo que reproduz várias das coisas que eu questiono e critico. O termo “Afrofuturismo” foi cunhado nos anos 90 por um acadêmico norte-americano branco para falar de produção norte-americanas negras.

Aquilo começou a se tornar uma pauta internacional e eu comecei a pensar sobre esses fluxos do mainstream, que reproduzem uma dominação dos termos que estão centralizados numa branquitude acadêmica e intelectual que acaba pautando as produções mundo a fora por várias questões. Por fluxos econômicos e por uma questão de visibilidade, os artistas negros e racializados não têm sua voz definida até que exista um rótulo em que eles/elas se enquadrem.

Então eu comecei a questionar todo esse fluxo e essa pauta que é colocada ainda por uma branquitude. E essa intelectualidade que acaba definindo os conceitos que a gente vai usar na América Latina, que a gente vai usar como pessoas racializadas num contexto em que as negritudes possuem especificidades em cada estado do Brasil, e quem dirá em cada país da América do Sul e do mundo.

Eu trago muito esse incômodo, partindo de um lugar que eu entendo que a minha ancestralidade indígena ou ameríndia é tão presente e forte e importante quanto a afro-brasileira e africana.

Eu entendo que há uma invisibilidade, inclusive, nesses fluxos dentro do Brasil. Porque a negritude e o corpo racializado do Nordeste é pautado também por conceitos que vem do Sudeste, academicamente e midiaticamente falando.

Eu começo a refletir sobre esse meu lugar mesmo, como uma pessoa que tem essas raízes no interior do Ceará e no interior do Rio Grande do Norte. Entendendo esses fluxos do que é essas raízes indígenas que são estigmatizadas, que são invisibilizadas e que são colocadas no passado.

Eu também questiono o próprio prefixo afro e o sufixo futurismo. Não é só um incômodo, porque eu discordo de uma coisa. Na verdade, eu discordo de várias coisas.

JC – Pode falar mais sobre isso?

biarritzzz – Eu questiono o próprio conceito do tempo ocidental que é colocado. O tempo ocidental entende o passado, o presente e o futuro como uma linha reta e, consequentemente, não há diálogo entre esses três tempos e também não há volta. É um fluxo contínuo e uma linha reta que vai para sempre pra frente ou pra cima se a gente parte de um evolucionismo.

Então, o que eu estou dizendo é que esse conceito de tempo ocidental, que vem desse Cronos, esse conceito cronológico, que inclusive a Eliana de Souza Ávila fala de um regime crononormativo que relega epistemas não eurocêntricos ao passado.

E é o que acontece com a população indígena no Brasil, que é colocada no passado, como se não existisse mais, “ela já foi dizimada, então não é mais uma preocupação”.

Eu questiono todo esse conceito do que seria esse regime crononormativo, que entende o tempo como como essa linha reta. Os conceitos de progresso e infinito, que estão encrustados no que é a própria pátria Brasil.

Eu questiono esses conceitos que vêm de um evolucionismo, uma forma evolucionista de pensar. Entendendo que o evolucionismo funcionou e funciona, por muito tempo, como um aparato de cientificismo do racismo.

Então a partir do momento que se usa uma teoria da biologia para falar em evolucionismo social, essa mesma linha reta do Cronos, essa mesma linha reta da evolução, é colocada para hierarquizar as diferentes culturas de etnias.

Eu questiono isso entendendo que o conceito de tempo dos povos originários não tem nada a ver com esse tempo cronológico que a gente vive e que nos é imposto. Então eu parto de pensar no tempo circular e no tempo expiralar. As letras todas falam muito disso.

O meu incomodo com esse sufixo “futurismo” vem daí, no qual eu fui enquadrada. Na verdade, eu fui associada a falar de “futuro” porque eu trabalho com mídias digitais, mas elas estão aí desde os anos 90. E, na verdade, falam muito mais sobre um presente e um passado que não foi fechado e está latente, do que sobre um futuro que, realmente, eu não posso falar por ele. Essa é a minha visão.

JC – Partindo do primeiro gancho sobre essa abordagem do Afrofuturismo como uma homoneigização das experiências das populações negras e ameríndias, queria que você falasse de como as inserções das participações especiais vão de confronto a essa ideia. Desde a Deize Tigrona até o Henrique Falcão, que tem ligações mais fortes com religiões de matrizes africanas.

biarritzzz – Sim, temos uma relação com religiões de matrizes afroindígenas, a Jurema Sagrada e o Candomblé Nagô, especificamente falando. E muito do processo do álbum e das letras vem também dessa espiritualidade. As mensagens estão explícitas e implícitas, espiritualidade também é política.

Convido a Deize [Tigrona] para participar e compor música EX@ pela admiração da referência do funk que ela é, uma vez que a música é um misto de funk com brega e música eletrônica, sendo uma releitura de uma música da cantora Srilankesa radicada na Inglaterra M.I.A.

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A Deize participa da Batekoo, selo com o qual colaboro como VJ há três anos aqui em Recife, e que é um manifesto/festa LGBTQIA+ que celebra a negritude e a musicalidade da periferia.

A letra de EX@ se trata de uma releitura da música XXXO da M.I.A. (motivo pelo qual assino essa música como B.I.A.), que foi lançada em 2010, discutindo um pouco do mundo da paquera e da pornografia online - majoritariamente heteronormativa.

Então na minha releitura, dez anos depois, levo a discussão aberta pela M.I.A. para falar do cenário em que as discussões de gênero tomaram com mais força a partir dos últimos anos através da internet, o que inclui o uso dos artigos de neutralidade de gênero ainda usados principalmente nessas plataformas, uma vez que ainda não adotados plenamente pelos meios oficiais

Para isso, convido a Mun Há (@_mun.ha), cantora pernambucana não binária, que compõe a letra abordando travestilidades e mencionando "a morte de Dandara" que pode ser interpretada tanto como a mulher travesti assassinada a pedradas e cujo vídeo do ato foi amplamente compartilhado nas redes sociais, quanto as tantas outras Dandaras, mulheres e guerreiras negras, trans ou cis, mortas no país todos os dias.

Mais especificamente sobre Henrique; é uma pessoa com quem aprendo diariamente e é o responsável pela produção dos beats do álbum (com exceção da primeira faixa, produzida pelo Novíssimo Edgar).

JC – Queria que você falasse sobre essa relação de recusa ao tempo ocidental cronológico a essas suas influências da espiritualidade do Candomblé Nagô, que vão justamente propor outro tempo distante desse que nos é imposto.

biarritzzz – Sim, principalmente do que é um tempo para os povos originários (de África e de América). É um tempo circular e/ou espiralar. É uma outra cosmovisão e forma de viver e entender o mundo.

E o ato de descolonizar passa por entender que ela existe, e entender que o tempo linear e cronológico funda a mesma base epistemológica do evolucionismo social, que baseia o racismo científico, a eugenia e toda o aparato científico que fez e faz com que o ideário de genocídio e epistemicídio de tudo o que não é considerado "o progresso" e "a evolução" seja normalizado.

JC – Retomando, daí também essa recusa ao "futurismo".

biarritzzz – Isso. De um lado por todas essas questões conceituais e epistemológicas. Por outro, na prática, quando no meu trabalho falo de internet, redes sociais, virtualidade e digitalidade. Não estou falando de futuro. Eu só estou usando o que existe no presente.

JC – Pensando nisso para Internet e as redes sociais, como você enxerga esse panorama ocidental, branco, empresarial (dominação do Vale do Silício), reino dos bots, e a tua oposição (e subversão) dessas ferramentas digitais pra realizar o Eu Não Sou Afrofuturista.

biarritzzz – Pois é, sobre toda essa visão, uma visão do senso comum ou enfim, do que se já se escreveu sobre a internet, principalmente no começo dela, nos anos 90, de ser um ambiente democrático, né?

Eu nem sequer acredito nesse termo, muito menos para falar de internet. Primeiro, porque democracia para mim é um termo vazio, por se tratar de um conceito criado também na Grécia Antiga, que no seu cerne se tratava de um processo de elites.

Então, a democracia nunca não foi um processo de elite e continua não sendo. Quanto as colonizações em imperialismos que existem na internet, que é justamente isso de entender que a internet não é um lugar livre, pelo contrário é um lugar que é dominado por multinacionais, em sua maioria norte-americanas, cujo os donos são homens brancos e ricos logicamente.

A internet também não é um lugar livre pelos próprios algoritmos, né? Os algoritmos fazem a gente ver o que é pra gente ver. Então não existe liberdade na internet definitivamente.

Mas o que eu tento contrapor a essa realidade é a compreensão de que as novas mídias e esse acesso a essas mídias, que se baratearam mas continuam não sendo acessíveis para todo mundo, principalmente no Brasil que milhões de pessoas não tem acesso à internet como o senso comum acha.

A grande parte da população brasileira sequer é alfabetizada, então isso também é uma outra questão. Os acessos no Brasil não são de forma alguma iguais ou igualitários.

O que eu tento contrapor a essa reprodução imperialista e colonialista do que é o capitalismo na Internet é o fato de existir um maior acesso a produções autônomas.

Então, entendendo que a gente vive no mundo da política das imagens, da política da visibilidade, o acesso maior a uma produção audiovisual autônoma, falando dos celulares e da possibilidade de postar esses conteúdos a todo minuto sem grandes custos, possibilita e possibilitou o fortalecimento de uma cultura que não necessita dos meios tradicionais, da grande mídia e da grande imprensa brasileira, que é dominada por nove grandes famílias.

Dentro dessa contraposição das mídias tradicionais para as novas mídias, eu ainda tento ver nessa brecha de abertura de acesso, um ponto positivo que precisa ser observado.

Dentro disso, eu trago um conceito que é o “Pedagogias do Meme” para pensar sobre essas produções caseiras, muitas vezes espontâneas, e que não passam por uma mídia tradicional, não passam pela hierarquização de uma mídia tradicional. Como essas produções dos memes no Brasil desenvolveram uma cultura, uma linguagem e uma forma mesmo de se comunicar e de entender o mundo. E que parte muito fortemente de corpos racializados, corpos periféricos e corpos não hegemônicos.

Então, entendendo o Brasil como um dos maiores produtores de memes do mundo, eu tento discutir e valorizar esse lugar do que são essas produções o que elas significam num contexto maior dentro do que são essas políticas da visibilidade, da imagem e da representatividade.

Não estou dizendo necessariamente que esses conceitos são positivos ou negativos, mas que as “Pedagogias do Meme” busca entender quais são as contribuições dessa nova cultura que se fortalece a cada dia, que é a cultura do meme.

E por isso que a inspiração fundamental para que eu enveredasse a produzir música é, e foi, a MC Loma, que consegue criar uma inserção na indústria musical através de uma produção que viralizou por ser um meme.

Intencionalmente também, porque elas trabalharam em cima de uma estética e do humor do caricato, e isso fez com que a produção delas viralizasse desbancando grandes apostas da indústria musical, em 2018, sendo o hit do carnaval a nível nacional. Então a MC Loma sendo essa menina de quatorze anos, da periferia, racializada, não branca, e a potência do que ela fez, para mim é o que me inspira e o que eu sei que inspira muita gente por aí a fora.

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