Ao iniciar as pesquisas que resultariam em sua tese de doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, a professora pernambucana Amanda Coutinho vinha de um mestrado no qual discutia os caminhos do financiamento à cultura no Brasil. No passo seguinte, propôs entender as configurações e especificidades que permeiam e permitem o trabalho cultural por aqui. O resultado do estudo chega agora compilado no livro Trabalhadores da Cultura (editora Brazil Publishing, 262 páginas), que reúne, junto às análises de Amanda, entrevistas com 22 artistas, ouvidos no Recife e em São Paulo capital.
Amanda conta que primeiro percebeu que as pessoas cada vez mais trabalham com serviços e produtos culturais, com dados como os do IBGE demonstrando isso. Contou também no processo de análise a observação social da proeminência desses serviços.
"Fui fazer um doutorado na linha de pesquisa da sociologia do trabalho e de política pública e entendi que havia uma lacuna dentro da sociologia do trabalho artístico, ou seja, de como as pessoas entendiam como é viver de arte, o que distingue o trabalho artístico de outros trabalhos e qual a influência das políticas públicas culturais dentro desse setor", conta ela em entrevista ao Jornal do Commercio.
Ao mergulhar na linha histórica das políticas públicas brasileiras, se deparou com o presente submerso em uma realidade neoliberal, em que leis de incentivo, como a Rouanet, têm uma articulação de fomento limitada, focada apenas em mecenato, por exemplo. "Isso precariza esse tipo de trabalho e desemboca, muitas vezes, em um empreendedorismo forçado", aponta.
Leia também:
>>> Lançamento da 15ª edição da Outros Críticos terá show online de biarritzzz
Para entender melhor como isso se dá na prática cotidiana, ouviu artistas - Alessandra Leão, Isaar França, Graxa, Fábio Trummer, Juçara Marçal, Márcia Castro e Rômulo Fróes entre eles - que se encaixam na realidade da independência, o que fez com que precisasse estabelecer esta definição, tão remodulada nas últimas décadas.
"Se pegarmos o primeiro critério mais óbvio, considerando os artistas da música, temos os que não possuem contrato com manager, mas aí entramos em grandes capitais nacionais, não faria sentido, é um conceito muito anos 1990. Passamos a entender o artista independente, então, como aquele que é autônomo, que consegue circular sem contrato com gravadora ou distribuidora, a não ser aquele que tem a sua própria. Costumo dizer que o independente depende de muitas coisas, parcerias, editais. Como eu pretendia entender o empreendedorismo cultural, como ele se comporta, essa categoria acabou sendo muito elucidativa", explica Amanda.
Nesse sentido, compreendeu que em São Paulo a linguagem do mecenato, do empreendedorismo e da lida com editais, por exemplo, é mais sedimentada e facilitada pelo acesso a cursos de gestão e produção. Outro ponto de vantagem em relação ao Recife e outras regiões é a quantidade considerável de casas noturnas e ambientes de apresentação, o que faz com que, do ponto de vista mercadológico, os artistas consigam alimentar sua cadeia de atividades quase que paralelamente ao estado.
"Aqui a gente não tem tantos editais, sobretudo federais, há mais financiamentos diretos, que são bons até certo ponto. Também são poucas as casas de shows, não fazemos bilheteria, então caímos em gargalos que ficaram bem evidenciados nas falas dos artistas, a necessidade de descentralizar esse financiamento", conta.
Entre as críticas citadas por Amanda, as mais recorrentes são sobre a diferença de tratamento em relação aos artistas, principalmente os do interior de Pernambuco. O valor dos cachês - menor para quem está longe da capital - foi queixa frequente.
Outro tópico relacionado à dinâmica das políticas públicas que, segundo os entrevistados, precisa ser revisto é a grande ausência de continuidade e desdobramentos. Um músico que teve a produção do CD custeada por um edital nem sempre consegue apoio para divulgação e circulação da obra.
"Vínhamos avançando na perspectiva de cultura como aspecto não meramente recreativo, mas como de constituição da nossa sociedade. Isso muda a partir de quando Michel Temer anuncia o encerramento do Ministério da Cultura (em 2016)", observa.
A pesquisadora ressalta como caminhos a reivindicação de representatividade no estado, o diálogo sobre transversalidades e a prática de se pensar cultura a partir dos municípios, assuntos destrinchados por ela no texto Cultura e o capitalismo de crise permanente, para o Le Monde diplomatique Brasil.
"Costumo dizer que o vírus não deixa ninguém mais pobre, ele escancara uma situação estrutural. Quem faz as consequências disso é o ser social, somos nós, por isso o vírus é antropocêntrico em todos os sentidos. Ele expõe situações bem precárias de trabalho, de falta de estabilidade do mercado cultural, de modo geral. Escancara os limites dessa gestão neoliberal, as desigualdades nessas especificidades", analisa a pesquisadora.
"Nessa cadeia de relações, o que a gente consegue entender, de uma forma muito evidente, é que o que está em jogo é sempre a disputa por uma concepção de estado. A gente escancara as contradições, acirra as condições já precarizadas e coloca em pauta algumas questões que não podem e não devem mais ser colocadas em segundo plano. Por exemplo, a gente tem aqui, nesse momento pandêmico e de pandemônio, a busca por conteúdos ao vivo, que cresceu cerca de 5000% durante a pandemia. A gente precisa se perguntar se essa forma de remuneração vai ser sempre assegurada ao intermediário, ao conglomerado da mídia, de entretenimento, porque alguém está ganhando, e não é o artista. É preciso que a gente paute até que ponto a Internet é uma possibilidade efetiva de aferição de renda para os artistas. Precisamos reivindicar, inclusive, a ideia de que a cultura não está na ordem do supérfluo, tem uma dimensão econômica, disputa uma forma de ver, de sentir, de viver a vida. Os trabalhadores, gestores e produtores da cultura precisam, sim, inserir suas atividades e preocupações no momento político. Ser artista é também ser trabalhador e um sujeito político. Precisamos disputar esses espaços e essas fontes de renda", encerra.
Trabalhadores da Cultura está à venda em formato físico (R$ 34) e e-book (R$ 17) em aeditora.com.br/produto/trabalhadores-da-cultura/. Em dezembro, será disponibilizado para download gratuito também no site da editora.