Nascida há 100 anos, Clarice Lispector renasce a cada geração de novos leitores

A partir deste domingo e até a próxima quinta-feira (10), o Jornal do Commercio publica uma série de matérias abordando aspectos distintos e reveladores da vida e da obra da autora, desde a infância no Recife até sua extensa correspondência e como seu legado é reapropriado nas redes sociais
Valentine Herold
Publicado em 06/12/2020 às 6:00
ÁGUA VIVA Sempre elegante, Clarice Lispector vivia escrevendo,investigando a alma humana, rodeada de livros Foto: DIVULGAÇÃO/ ROCCO


Há quem diga que morrer no dia de seu aniversário significa zerar o carma. Clarice Lispector, por apenas 24 horas, ficou de fora dessa equação espiritual - logo ela, supersticiosa assumida e que, por uma vida inteira, incessantemente escreveu sobre a essência humana, procurando expressar o indecifrável da vida. No próximo dia 10 comemora-se o centenário desta que é uma das populares e mais geniais escritoras da língua portuguesa. Um alento encerrar este 2020 tão difícil celebrando Clarice e seu legado literário que continua, talvez mais do que nunca, tão necessário.

A partir deste domingo e até a próxima quinta-feira, dia de seu nascimento, o Jornal do Commercio publica uma série de matérias abordando aspectos distintos e reveladores da vida e da obra da autora, como a infância e o início da adolescência no Recife, a assimilação de sua obra na dinâmica nas redes sociais, sua extensa correspondência reunida recentemente no volume Todas as Cartas pela editora Rocco, a importância da personagem Macabéa, sua última protagonista (A Hora da Estrela, 1977), e seu lado místico.

Nascida na pequena cidade de Tchetchelnik, na Ucrânia, Clarice desembarca no Brasil muito pequena. Em 1922, atendendo ainda pelo nome ucraniano de Chaya (vida ou animal, em hebraico), ela chega a Maceió junto aos pais - Pinkhas, o pai, passa a chamar Pedro e Mania, a mãe, Marieta - e às duas irmãs mais velhas - Leah, que adota o nome brasileiro Elisa e Tania, que mantém seu nome de origem. A família Lispector chega ao Brasil com a esperança de dias menos sombrios, fugindo de perseguição antissemita e procurando refúgio primeiro em Alagoas, onde já morava uma irmã de Mania.

DIVULGAÇÃO/ ROCCO - DESTINO Chaya Lispector chegou ao Brasil aos dois anos e ganhou o nome de Clarice. A consagração viria logo no primeiro romance, Perto do Coração Selvagem

A mãe, cuja sífilis decorrente de um estupro brutal de soldados russos, já chega debilitada ao Brasil e irá morrer precocemente, aos 41 anos. Sua doença e ausência decorrente vai marcar Clarice para sempre.Ela, que havia sido gerada com a crença que seu nascimento poderia curar a doença materna, nunca se esqueceria desta missão falida.

Talvez por isso foi uma mãe tão dedicada e carinhosa com os filhos Pedro e Paulo e tenha, nessa caminhada contínua de autoconhecimento, buscado preencher tantas lacunas. "Clarice buscava ser mãe de todas as coisas e isso permitia que ela fosse mãe de si mesma, já que sempre foi profundamente marcada pela ausência do carinho materno", aponta a amiga e antiga editora de Clarice no Jornal do Brasil, a escritora Marina Colasanti.

A morte de Marieta ocorre no Recife, em 1929. A essa altura, a família já morava na capital pernambucana há quatro anos e permaneceria aqui até 1935, quando o viúvo Pedro decide buscar no Rio de Janeiro melhores oportunidades de trabalho e na esperança de que, convivendo com uma comunidade judaica mais ampla, suas filhas encontrem maridos da mesma religião (desejo realizado apenas por Tania). Os Lispector passam uma década no Recife e este período de tempo foi fundamental para Clarice. “O Recife está todo vivo dentro de mim”, afirmou ao Jornal do Commercio em 1976, quando visitou a cidade na ocasião de um congresso.

No ano seguinte, dez meses antes de morrer de um câncer no ovário aos quase 57 anos, em 9 dezembro, ela concede a Julio Lerner, da TV Cultura, sua única entrevista televisiva. Desconcertantemente sincera e intensa, foi também nessa entrevista que Clarice declarou que não se considerava escritora profissional, pois ela só escrevia quando queria e que precisava manter essa liberdade.

Mas escrever sempre foi uma necessidade, um impulso vital desde que ela era uma criança que, entre as brincadeiras na Praça Maciel Pinheiro e as aulas no Ginásio Pernambucano ela fabulava e escrevia histórias. Logo cedo, aos 23 anos e já casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, se consagraria romancista e depois contista, cronista, autora de livros infantis e também chegou a pintar quadros.

Com o marido - de quem se separa após cerca de 15 anos -, Clarice passa a ser cidadã do mundo, morando e visitando diversos países, mas sem nunca esquecer do Brasil, para onde volta em 1959. Autora de 18 livros publicados (alguns póstumos), sua obra está presente hoje em 40 países e já foi traduzida para 32 idiomas. Continua sendo estudada por adolescentes, adorada por adultos e lida e relida por pessoas da terceira idade. Sua literatura é inspiradora, questionadora, universal e atemporal; as questões que dela surgem nunca se esgotam.

Como se ela soubesse que precisaria de ao menos mais uma vida para desvendar os mistérios da existência - e com um senso de humor muito próprio -, Clarice pede para que a entrevista da TV Cultura seja veiculada apenas após sua morte. “Agora eu morri”, diz ao fim do depoimento. “Vamos ver se eu renasço.”

Saiba mais sobre alguns dos principais livros de Clarice Lispector:

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