Na sua literatura e lembranças, Clarice Lispector sempre manteve vivo o Recife onde passou a infância

A escritora morou na capital pernambucana dos 5 aos 15 anos, entre 1925 e 1935. Casa onde cresceu, na Praça Maciel Pinheiro, amarga há décadas o abandono
Valentine Herold
Publicado em 08/12/2020 às 6:00
INFÂNCIA Escultura de Clarice fica na praça onde a escritora brincava, diante de casa que precisa de urgente restauro Foto: BOBBY FABISAK/JC IMAGEM


Sentada em um dos bancos da Praça Maciel Pinheiro, uma senhora magra, de cabelos curtos e grisalhos, vestida com um conjunto estampado de oncinha e de óculos escuros alimenta dezenas de pombos. No colo, segura firme um filhote e o acarinha como se a sobrevivência do animal dependesse desse cuidado maternal. Na fonte de 145 anos localizada no centro da praça, um grupo de meninos se banha a contragosto da polícia que passa por ali de minutos em minutos buzinando. Tudo ocorre em frente ao sobrado de número 387, onde Clarice Lispector morou durante a infância passada no Recife, na tarde da primeira sexta-feira do mês, seis dias antes do centenário da escritora.

A cena, banal para um centro urbano recifense que amarga o abandono do poder público, poderia até ter sido tirada de um dos tantos contos e crônicas de Clarice em que ela, a partir de um evento cotidiano, se depara com questões espirituais e existenciais. Mas poucos são os que passam pela Maciel Pinheiro e sabem da importância que esta praça, hoje mal cuidada e ponto de encontro para consumo de drogas, teve na vida de uma das maiores autoras brasileiras.

“Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme", escreveu Clarice em A descoberta do Mundo, em trecho destacado por Benjamin Moser na biografia Clarice, (Companhia das Letras). Em diversas ocasiões, tanto em entrevistas quanto na sua produção literária, ela falou da relevância que os dez anos passados em Pernambuco tiveram em sua formação. E a Praça Maciel Pinheiro, em especial o sobrado cor de rosa 387, indica o marco zero da geografia recifense de Clarice Lispector.

A infância e o início da adolescência desta então jovem filha caçula de imigrantes ucranianos ocorreu principalmente pelo bairro da Boa Vista, na Rua da Aurora e pelo Cais. O Recife de Clarice é o centro da efervescência intelectual e cultural do modernismo pernambucano. Perto dali se encontrava a Cafeteria Glória, palco do assassinato de João Pessoa em 1930.

No mesmo ano deste trágico acontecimento que mudaria os rumos da política nacional com a ascensão de Getúlio Vargas - e na mesma vizinhança -, era inaugurada por Jacob Berenstein a primeira Livraria Imperatriz. Também nos arredores ficava o Colégio Hebreu-Iídiche Brasileiro, onde Clarice estudou até entrar no Ginásio Pernambucano, localizado não muito longe, em 1932.

"O tempo que ela passou no Recife foi o mais importante de sua vida. Foi onde ela cresceu, perdeu a mãe.. A cidade foi uma saudade constante ao longo de sua vida. Ela não voltou muitas vezes pois morou anos fora do Brasil por conta da atividade diplomática do marido não era nada barato viajar pelo país", conta Benjamin Moser, que visitou a cidade pela primeira vez em 1996 e conhece bem os locais que marcaram a pequena Clarice. Era, inclusive, para ele estar aqui esta semana, celebrando o centenário durante a Semana do Livro da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Já que o evento não pode ocorrer presencialmente, a solução encontrada para a participação de Benjamin e dos outros convidados foi virtual. Ele realiza a abertura do evento nesta quarta (9).

"Quando a família de Clarice chega em Pernambuco, após três anos em Alagoas, o Recife era pequeno. Não havia o bairro de Boa Viagem, por exemplo, e a cidade muito muito de lá para cá, claro, mas esse centro onde ela cresceu não mudou tanto. Quando estou aí me sinto muito próximo dela", relata o biógrafo. O escritor nunca se conformou com o abandono do sobrado e chegou a elaborar um projeto de compra e reforma do local para transformá-lo em centro cultural que preservasse a memória de Clarice Lispector. Mas se deparou com a intensa e conhecida burocracia das instituições brasileiras e não conseguiu levá-lo adiante.


Esse saudade permanente e plena noção do quando Pernambuco foi fundamental para ela e sua família pode ser encontrada em alguns dos contos mais conhecidos de Clarice, reunindo no livro Felicidade Clandestina (1971).

O texto homônimo é o famoso depoimento de uma Clarice criança que descobre a força que o livro tem em sua vida e relembra da ruindade de uma colega de classe, filha de um dono de livraria (da Imperatriz, mas o nome não é citado), que teimou em não emprestar As Reinações de Narizinho até sua mãe obrigá-la. Há ainda Cem Anos de Perdão, em que ela conta como roubava rosas e pitangas dos jardins dos casarões das famílias ricas do Recife

E não há como não citar o icônico conto Restos do Carnaval, ambientado na Praça Maciel Pinheiro. É um texto sincero e muito tocante sobre a doença da mãe e a adrenalina de se fantasiar, pela primeira, para o Carnaval. Foi inclusive ele que inspirou a fotógrafa Keila Vieira a realizar uma série no início deste ano. Dela saiu a fotografia vencedora do concurso da Fundação Joaquim Nabuco, Claricem Imagens.

É também a partir do Recife de Clarice que a escritora e pesquisadora Geórgia Alves realizou sua pesquisa de mestrado em Teoria Literária, que resultou na instigante dissertação O Retrato do Recife na Obra de Clarice Lispector, disponível para leitura no repositório online da UFPE. "Vejo em Clarice uma generosidade em falar sobre felicidade, seja ela clandestina ou não, e acabei descobrindo essa relação de amor com o Recife", conta.

Promessa de revitalização do sobrado

Para os leitores de Clarice Lispector e pesquisadores de sua obra,, a decadência da casa onde a família Lispector morou na segunda metade da década de 20 é sempre relatado com muita tristeza e indignação. Abandonada há décadas, ela se encontra provisoriamente tombada em nível estadual pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e em análise preliminar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para tombamento federal, é propriedade da Santa Casa de Misericórdia do Recife.

O avançado estágio de degradação interna é visível até do lado de fora, a calçada da frente costuma estar ocupada com sacos de material de construção ou garrafões de água. Se não fosse pelas duas pequenas placas e pela estátua de Clarice localizada na Praça Maciel Pinheiro, que integra o Circuito da Poesia (apesar dela ter sido romancista, contista, cronista mas nunca poeta), não haveria indicativo que por ali morou.

Este ano a Fundação Joaquim Nabuco venceu a primeira etapa do edital para o projeto de recuperação da casa. A proposta da instituição é restaurar o imóvel e, em seguida, transformá-lo em um centro cultural. “Gostaríamos de não apenas transformar num local de preservação da memória de Clarice, mas também de sua família. Elisa, a irmã mais velha, tem um papel importante. E como estamos falando de memória cultural da cidade, esses espaço também será dedicado a outros escritores pernambucanos desse mesmo recorte temporal. O objetivo é fazer do sobrado uma extensão da Fundação, um centro dedicado a ações de literatura”, explica Mário Hélio, que está à frente da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca), da Fundaj.

Sobre como a instituição pretende lidar com o desafio de transformar, de fato e na prática, a antiga casa da família Lispector em um centro vivo e dinâmico, Mário Hélio aponta para a necessidade de debate entre a Fundaj e a Prefeitura do Recife. "Não tem como pensar nesse projeto e não passar pela discussão da degradação da Praça Maciel Pinheiro. Esse debate é inevitável, assim como chamar a sociedade e os apaixonados pela literatura de Clarice a também participar."

Entre processos licitatórios e o plano da reforma ser iniciada em 2021, talvez reste ainda um pouco de esperança aos recifenses e amantes da literatura de Clarice que o sobrado 387 e a Praça Maciel Pinheiro ganhem novamente o brilho de outrora.


E quando a festa ia se aproximando, como explicar agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão e que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. (...) Não me fantasiavam no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma das minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano.

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