CINEMA

Guerra da Rússia com Ucrânia volta a expor garras geopolíticas da indústria do cinema

Gigantes como Disney, Warner, Paramount e Sony abrem mão do mercado consumidor russo para impor boicotes; Retirada de russos em festivais preocupam cineastas

Cadastrado por

Emannuel Bento

Publicado em 03/03/2022 às 20:56 | Atualizado em 04/03/2022 às 15:36
SEM SUPER-HERÓI Novo Batman, vivido por Robert Pattinson e com Zoë Kravitz (Mulher Gato) no elenco, não chegará aos cinemas da Rússia por boicote anunciado pela Warner Bros. - WARNER/DIVULGAÇÃO

Um ladrão de bolsas sem querer descobre um plano maligno dos russos para impor uma ditadura mundial. O enredo do clássico "Anjo do Mal" (1953), de Samuel Fuller, capta bem o clima que os Estados Unidos queriam criar no mundo durante a Guerra Fria. O uso do cinema para fins propagandísticos teve grande sucesso no século passado, operando como "soft power" na atualidade. Eis que essa indústria estratégica voltou a mostrar explicitamente suas garras geopolíticas com a guerra da Rússia na Ucrânia, que tem criado um certo "déjà vu" daqueles tempos de tensão no Ocidente.

Gigantes da indústria do cinema estadunidense, como Disney, Warner, Paramount e Sony, anunciaram nesta semana que só vão exibir os seus lançamentos no país quando Vladmir Putin anunciar cessar-fogo. Os russos já não verão filmes como o novo "Batman", com Robert Pattinson, nem estreias próximas como "Morbius", vampiro da Marvel interpretado por Jared Leto, da Sony Pictures, "Red - Crescer É uma Fera", da Pixar, ou "Sonic 2: O Filme" e "Cidade Perdida", da Paramount.

"O mercado da Rússia é muito importante, seja no sentido do consumo, por ter uma população gigante, ou da produção. A decisão do boicote é pensada com esse contrapeso, como uma lógica colocada na balança. Há um efeito simbólico nesse isolamento, de estigmatização. Existe a perda mercadológica, mas a geopolítica se sobrepõe", diz o cineasta Marcelo Costa, professor de cinema na UFPE e integrante da Parabelo Filmes.

"Morbius", da Marvel, não deve estrear na Rússia após sanção por parte das gigantes do cinema - SONY/DIVULGAÇÃO
ANIMAÇÃO Sonic 2 tem estreia prevista para 2020 - PARAMOUT PICTURES/DIVULGAÇÃO

"Esse também é um caso particular, pois trata-se de um potência cujo isolamento é interessante para a maior parte das forças políticas do Ocidente. Esse isolamento se manifesta em diversos campos, seja econômico, cultural ou até esportivo, como no caso da Copa do Mundo, que baniu a Rússia, mas realizada no Catar, um país que não tem um regime democrático", acrescenta.

Marina Rodrigues, produtora-executiva focada em políticas públicas no audiovisual e criadora do projeto Simplificando Cinema, pontua que as sanções também podem ter interesses no enfraquecimento de um país que é da China um grande parceiro. "A China é o maior mercado audiovisual do mundo, e isso vem incomodando há muitos anos os Estados Unidos. A Ásia também tem a Coreia do Sul, que está fortíssima na política cultural e tem tirado muito o protagonismo norte-americano na questão do soft power", comenta.

"Esses pontos ainda puxam para uma questão que envolve as empresas de tecnologia e telecomunicações, pois vivemos a era do 5G e fortalecimento do streaming no audiovisual. É muito importante que os EUA detenham esse monopólio ao redor do mundo. Tanto que é AT&T, uma das principais empresas que hoje querem prover o 5G, tem uma política expansionista muito grande na América Latina", diz, citando a companhia norte-americana que recentemente comprou a Warner e a Discovery Channel. "O objetivo é ser um grande conglomerado para ter a exibição de conteúdo único e acesso facilitado."

Punições em festivais de cinema

Para além das sanções de impactos mais econômicos, grandes festivais de cinema estão aderindo ao boicote. Depois que a Academia de Cinema da Ucrânia criou uma petição virtual pedindo retaliação à Rússia, o Festival de Glasgow, que começou nesta semana no Reino Unido, baniu dois filmes russos da programação - "No Looking Back", de Kirill Sokolov, e "The Execution", de Lado Kvataniya.

O mesmo ocorreu com o Festival de Estocolmo, da Suécia, que retirou da programação filmes com financiamento estatal russo. Já o Festival de Cannes, na França, marcado para maio, não aceitará a presença de delegações oficiais da Rússia ou qualquer pessoa ligada ao governo de Putin no evento.

RETIRADO Cena de No Looking Back, filme de Kirill Sokolov, cortado da programação do Festival de Glasgow - SAGA FILM COMPANY/DIVULGAÇÃO
CANCELADO Filme russo The Execution foi retirado de festival após petição da Academia de Cinema da Ucrânia - DIVULGAÇÃO

Fontes ouvidas pelo JC apontam para o perigo existente na decisão: a possibilidade de que russos que não apoiam o regime de Putin deixem de mostrar a realidade do país pelas suas óticas. "Acredito que seja a replicação de uma lógica punitivista que estigmatiza a população da Rússia e seus bens culturais, como se a partir dessa produção cultural existisse uma adesão automática à política externa ou às decisões do governo Putin", diz o professor da UFPE Marcelo Costa.

"Os festivais terminam silenciando expressões de artistas, cidadãos, que possuem um olhar muito interno e profundo sobre o cotidiano russo. Aqui no Ocidente ficamos muito reféns das agências de notícias das potências, num olhar monocular, digamos assim. Terminamos silenciando uma possibilidade crítica de alguém que vive naquele contexto. É muito contraditória essa punição", continua o pesquisador.

Marina Rodrigues ressalta que festivais de cinema têm como objetivo ser uma expressão da diversidade. "Nem quando Cuba foi isolado pelos EUA lá atrás, na Guerra Fria, isso aconteceu. O mundo viu filmes cubanos sendo referenciados em festivais importantes na Europa, principalmente na Alemanha. O documentarista cubano Santiago Álvarez Román, por exemplo, apoiava o regime de Fidel Castro, mas denunciou as atrocidades da guerra, sobretudo no Vietnã”, pontua.

"A partir do momento em que sancionam um artista de estar num festival de cinema, abre-se mão da arte. A arte também é política. Quando se media um festival, obviamente que se pode evitar um filme de viés muito nacionalista ou de propaganda neonazista. Mas a partir do momento em que você entrega na mão das pessoas que elas estão proibidas, cria-se um sentimento anti-Rússia que beira a xenofobia. Como eles vão conseguir apoio estatal e de outras empresas?."

O fenômeno do boicote em salas e nos festivais também surpreende porque isso não ocorreu em conflitos recentes. A própria Europa abriu fundos para ajudar a fomentar produções de países que têm sua democracia em risco. Recentemente, a Suécia incluiu o Brasil em sua lista de apoio nesse sentido.

"A Europa sempre defendeu fundos de fomentos para países que vivem guerras na África e no Oriente Médio. Seria possível abrir espaço para a Ucrânia, que também tem uma democracia fragilizada, e para russos refugiados de um regime ditatorial e que condeno totalmente", finaliza a produtora. Até o momento, as negociações entre Rússia e Ucrânia não preveem cessar-fogo. Que as câmeras atentas do audiovisual registrem - e denunciem - a atualidade para a posterioridade.

Tags

Autor

Veja também

Webstories

últimas

VER MAIS