Um ladrão de bolsas sem querer descobre um plano maligno dos russos para impor uma ditadura mundial. O enredo do clássico "Anjo do Mal" (1953), de Samuel Fuller, capta bem o clima que os Estados Unidos queriam criar no mundo durante a Guerra Fria. O uso do cinema para fins propagandísticos teve grande sucesso no século passado, operando como "soft power" na atualidade. Eis que essa indústria estratégica voltou a mostrar explicitamente suas garras geopolíticas com a guerra da Rússia na Ucrânia, que tem criado um certo "déjà vu" daqueles tempos de tensão no Ocidente.
Gigantes da indústria do cinema estadunidense, como Disney, Warner, Paramount e Sony, anunciaram nesta semana que só vão exibir os seus lançamentos no país quando Vladmir Putin anunciar cessar-fogo. Os russos já não verão filmes como o novo "Batman", com Robert Pattinson, nem estreias próximas como "Morbius", vampiro da Marvel interpretado por Jared Leto, da Sony Pictures, "Red - Crescer É uma Fera", da Pixar, ou "Sonic 2: O Filme" e "Cidade Perdida", da Paramount.
"O mercado da Rússia é muito importante, seja no sentido do consumo, por ter uma população gigante, ou da produção. A decisão do boicote é pensada com esse contrapeso, como uma lógica colocada na balança. Há um efeito simbólico nesse isolamento, de estigmatização. Existe a perda mercadológica, mas a geopolítica se sobrepõe", diz o cineasta Marcelo Costa, professor de cinema na UFPE e integrante da Parabelo Filmes.
"Esse também é um caso particular, pois trata-se de um potência cujo isolamento é interessante para a maior parte das forças políticas do Ocidente. Esse isolamento se manifesta em diversos campos, seja econômico, cultural ou até esportivo, como no caso da Copa do Mundo, que baniu a Rússia, mas realizada no Catar, um país que não tem um regime democrático", acrescenta.
Marina Rodrigues, produtora-executiva focada em políticas públicas no audiovisual e criadora do projeto Simplificando Cinema, pontua que as sanções também podem ter interesses no enfraquecimento de um país que é da China um grande parceiro. "A China é o maior mercado audiovisual do mundo, e isso vem incomodando há muitos anos os Estados Unidos. A Ásia também tem a Coreia do Sul, que está fortíssima na política cultural e tem tirado muito o protagonismo norte-americano na questão do soft power", comenta.
"Esses pontos ainda puxam para uma questão que envolve as empresas de tecnologia e telecomunicações, pois vivemos a era do 5G e fortalecimento do streaming no audiovisual. É muito importante que os EUA detenham esse monopólio ao redor do mundo. Tanto que é AT&T, uma das principais empresas que hoje querem prover o 5G, tem uma política expansionista muito grande na América Latina", diz, citando a companhia norte-americana que recentemente comprou a Warner e a Discovery Channel. "O objetivo é ser um grande conglomerado para ter a exibição de conteúdo único e acesso facilitado."
Punições em festivais de cinema
Para além das sanções de impactos mais econômicos, grandes festivais de cinema estão aderindo ao boicote. Depois que a Academia de Cinema da Ucrânia criou uma petição virtual pedindo retaliação à Rússia, o Festival de Glasgow, que começou nesta semana no Reino Unido, baniu dois filmes russos da programação - "No Looking Back", de Kirill Sokolov, e "The Execution", de Lado Kvataniya.
O mesmo ocorreu com o Festival de Estocolmo, da Suécia, que retirou da programação filmes com financiamento estatal russo. Já o Festival de Cannes, na França, marcado para maio, não aceitará a presença de delegações oficiais da Rússia ou qualquer pessoa ligada ao governo de Putin no evento.
Fontes ouvidas pelo JC apontam para o perigo existente na decisão: a possibilidade de que russos que não apoiam o regime de Putin deixem de mostrar a realidade do país pelas suas óticas. "Acredito que seja a replicação de uma lógica punitivista que estigmatiza a população da Rússia e seus bens culturais, como se a partir dessa produção cultural existisse uma adesão automática à política externa ou às decisões do governo Putin", diz o professor da UFPE Marcelo Costa.
"Os festivais terminam silenciando expressões de artistas, cidadãos, que possuem um olhar muito interno e profundo sobre o cotidiano russo. Aqui no Ocidente ficamos muito reféns das agências de notícias das potências, num olhar monocular, digamos assim. Terminamos silenciando uma possibilidade crítica de alguém que vive naquele contexto. É muito contraditória essa punição", continua o pesquisador.
Marina Rodrigues ressalta que festivais de cinema têm como objetivo ser uma expressão da diversidade. "Nem quando Cuba foi isolado pelos EUA lá atrás, na Guerra Fria, isso aconteceu. O mundo viu filmes cubanos sendo referenciados em festivais importantes na Europa, principalmente na Alemanha. O documentarista cubano Santiago Álvarez Román, por exemplo, apoiava o regime de Fidel Castro, mas denunciou as atrocidades da guerra, sobretudo no Vietnã”, pontua.
"A partir do momento em que sancionam um artista de estar num festival de cinema, abre-se mão da arte. A arte também é política. Quando se media um festival, obviamente que se pode evitar um filme de viés muito nacionalista ou de propaganda neonazista. Mas a partir do momento em que você entrega na mão das pessoas que elas estão proibidas, cria-se um sentimento anti-Rússia que beira a xenofobia. Como eles vão conseguir apoio estatal e de outras empresas?."
O fenômeno do boicote em salas e nos festivais também surpreende porque isso não ocorreu em conflitos recentes. A própria Europa abriu fundos para ajudar a fomentar produções de países que têm sua democracia em risco. Recentemente, a Suécia incluiu o Brasil em sua lista de apoio nesse sentido.
"A Europa sempre defendeu fundos de fomentos para países que vivem guerras na África e no Oriente Médio. Seria possível abrir espaço para a Ucrânia, que também tem uma democracia fragilizada, e para russos refugiados de um regime ditatorial e que condeno totalmente", finaliza a produtora. Até o momento, as negociações entre Rússia e Ucrânia não preveem cessar-fogo. Que as câmeras atentas do audiovisual registrem - e denunciem - a atualidade para a posterioridade.