Já ouviu falar em música 'tronxa'? Com 'x' mesmo, ao invés de 'ch'? O conceito foi cunhado pelo músico pernambucano Henrique Albino, multi-instrumentista, arranjador e produtor musical bastante conhecido na cena musical do Estado. Agregando gêneros como jazz contemporâneo, música de concerto e 'world music', a expressão diz respeito a um tipo de música complexa, desafiadora, instigante e inovadora, seja para quem toca, interpreta ou escuta.
Nesta quarta (9) e quinta-feira (10), o conceito ganhará uma programação oficial com o Festival de Música Tronxa, que será realizado no Teatro do Parque, no Centro do Recife. Os artistas presentes já deixam mais nítido o seu significado para quem ainda não entendeu: o aclamado pianista Amaro Freitas, com seu afro-jazz pernambucano que ganhou o mundo; a cantora e compositora Surama Ramos, acompanhada por seu grupo de música afro-contemporânea; e o Henrique Albino Quarteto, dando sentido à música pernambucana tronxa.
"Com o festival, queremos que a galera que está fazendo música tronxa no agora tenho um lugar para tocar, para aglutinar artistas que pensam de forma desafiadora, para reunir compositores, intérpretes e o público que gosta desse tipo de música desafiadora, diferente", diz Henrique Albino ao JC. "Teremos um festival que, ao mesmo tempo, abraça as raízes nordestinas através das complexidades do frevo, do maracatu, do xote e do baião, linguagens respeitadas mundialmente."
"O conceito foi uma forma para categorizar uma forma de se pensar a música. Não é relativo a gênero, ou um novo gênero, é uma forma de explorar os limites que a música nos dá", continua o multi-instrumentista, que também atua no Recife como educador, tendo ainda executado arranjos em discos indicados ao Grammy para as cantoras Elza Soares e Elba Ramalho.
"Existe a música tronxa da música barroca, do século 16, do período romântico, do século 19, e aquela do século 20, como a da Segunda Escola de Viena. Aqui no Brasil temos Villa Lobos, Claudio Santoro, Marlos Nobre, Hermeto Pascoal. Tem a nova geração, em que eu me enquadro, o Ama, o Hugo Medeiros, Felipe de Lima, Silva Barros".
O músico ressalta que a música pernambucana tem um "quê" histórico de transgressão. "O frevo é um dos ritmos mais difíceis de se tocar no mundo. Temos outros gêneros complexos como o maracatu rural, o caboclinho, e vários outros que possuem técnicas muito específicas, rápidas. A própria embolada, o repente, é algo rápido e de improviso complexo. Nós pernambucanos somos fascinados pela complexidade. Tentei trazer isso para o nosso jeito pernambucano de ser".
Festival começa com filme
No primeiro dia do evento, ainda haverá a estreia do filme "Pi de Pífano - Banda de Pífanos de Caruaru e Henrique Albino e Grupo", gravado em 2018 para registrar um show com as duas bandas. O projeto tem direção musical de Albino, que participa tocando saxofones, flauta, pífano e como arranjador juntamente ao seu grupo formado por Amaro Freitas (piano), Gilú Amaral (percussão), Alex Santana (tuba) e Hugo Medeiros (bateria).
Um dos símbolos da cultura do Agreste de Pernambuco, a Banda de Pífanos até hoje é liderada pelo mestre Sebastião Biano, membro da formação fundadora e que hoje tem 103 anos. O grupo reconhecimento nacional com Pipoca Moderna, lançada no disco "Expresso 2222", de Gilberto Gil, em 1972.
Para "Pí de Pífano", Albino transcreveu e analisou a musicalidade dos gênios do pífano, criando novas peças musicais que trazem compassos alternados, polirritmias e politonalismo - fazendo jus à complexidade da música tronxa. "Usamos um pouco de tudo, com muita improvisação e a ideia que queremos com isso é provar que os dois grupos tocando músicas, cada um do seu jeito, podem conviver tranquilamente no mesmo espaço e gerar um novo som", diz Albino.
Para o músico, o objetivo do projeto é mostrar que a diferença, a modernidade e a transgressão das criações musicais podem conviver com aspectos tradicionais - aspectos esses que, na época das suas criações, já eram inovações.
Atrações com repertórios especiais
Já na quinta-feira (10), às 17h, haverá uma segunda exibição do filme. Às 18h30, as apresentações musicais começam com a cantora Surama Ramos, que sobe ao palco com o seu quinteto de câmara feminino formado por Maíra Macêdo (cavaquinho de 5 cordas), Moema Macêdo (bandolim de 10 cordas), Raquel Paz (viola de arco) e Karol Maciel (sanfona).
No repertório, a artista traz algumas de suas músicas autorais como "Baobá" e "Frevo Retinto" e outras de compositores renomados como "Emoriô", de João Donato e "Arrastão", de Vinicius de Morais e Edu Lobo com arranjos camerísticos com influências na música atonal do início do século 20.
Já Amaro Freitas, citado nas principais revistas de jazz mundial e tendo tocado nos palcos mais importantes do gênero, tocará músicas como "Carinhoso", onde faz uma homenagem ao mestre Pixinguinha e aos 100 anos de modernismo negro; "Pequena África", composição inédita numa homenagem a esse lugar do Rio de Janeiro que foi fundamental para a religião afro brasileira e desenvolvimento do samba, e "Chega de Saudade" que será entoada na intenção de matar a saudade que ele estava de tocar com o público do Recife.
Na sequência, o grupo Henrique Albino Quarteto encerra tocando música pernambucana tronxa com as composições do seu primeiro álbum lançado no ano passado, intitulado "Música Tronxa". Esse disco marca o lançamento do seu conceito de música tronxa pernambucana, fundindo elementos da mais alta complexidade musical com ritmos e estéticas nordestinas. O projeto tem produção de Guilherme Jacobsen e conta com o incentivo da Lei Aldir Blanc.