A reclusão forçada da pandemia fez Alceu Valença recorrer a um velho amigo de relação já um tanto dispersa: o violão. Entre dedilhadas, nasceu a trilogia de álbuns acústicos lançados pela Deck: "Sem Pensar no Amanhã", "Saudade" e "“Senhora Estrada", com releituras e canções inéditas - que dão os títulos dos álbuns.
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A boa recepção do projeto estimulou a realização da turnê acústica "Solo", que começou em Portugal, com seis shows, passou por São Paulo no último dia 4 de março e agora estreia no Recife, com apresentação única no Teatro Guararapes, a partir das 21h.
Alceu não transporta apenas a sonoridade cristalina dos álbuns para o palco, como também uma ordem de execução que traça um "roteiro cinematográfico", passando por Recife e Olinda, Agreste e Sertão, passando por Rio, Minas e Lisboa. O repertório inclui sucessos como "Belle de Jour", "Anunciação", "Tropicana", inéditas e interpretações de temas de Luiz Gonzaga, como “Pau-de-Arara”, “Sala de Reboco” e "Sabiá".
Em entrevista ao JC, o artista conta como tem sido a experiência acústica, menos habitual em sua carreira, que é marcada por shows com bandas suntuosas. Também fala sobre como foi o seu carnaval, a renovação do seu público, o impacto da internet na música e a Casa Estação da Luz, sua casa em Olinda, aberta ao público no final do ano passado. Confira:
Como é que foi estrear a turnê "Solo" na Europa? Como o público reagiu ao projeto?
Foi demais. Casas totalmente lotadas, com uma vibração inacreditável. A gente fez shows em teatro, né? Teatros grandes, em tudo quanto é canto: Coimbra, Ovar, Braga, Marinha Grande, Setúbal e Estoril. Em julho voltamos para a Europa com banda, com shows na Alemanha, Inglaterra, Espanha, Holanda….
Você não costuma fazer turnês acústicas. Acredita que "Solo" retrata esse período de reclusão e autoconhecimento da pandemia?
Sou uma pessoa que não costumava tocar violão, porque quase sempre eu tinha uma banda perto de mim. Gosto muito de estar me movimentando no palco. Na década de 1970 eu fiz um show acústico chamado Vivo, e depois outro. Alberto Lessa era o meu produtor na época. De repente, parei de tocar. Fui para a Europa morar na França, lá cheguei a fazer um show em Paris. Foi um sucesso. Quem participa dele, só tocando viola, era o Paulinho (Paulo Rafael, guitarrista falecido em agosto de 2021). O pessoal gostou muito e a partir disso fizemos, em Paris, o disco "Saudade de Pernambuco". Depois disso, nunca mais fiz show com violão. Nas turnês, alguém sempre levava o meu violão para eu pegar no palco. Eu nem passo violão. Na pandemia, fiquei recluso em casa e resolvi tocar de maneira natural. A minha mulher, Yanê, deu a ideia de falar com o rapaz da Deck, Rafael Ramos, para gravar um disco. Acabei gravando três.
Qual o grande diferencial de fazer um show acústico? Existe algum benefício, ou desvantagem?
Claro, evidentemente, porque sou apenas eu e eu. É mais um show que eu tenho, dentro de uma diversidade que existe. Ele acontece após vários pedidos, já temos um mês previsto no Rio Grande do Sul, tanto em Porto Alegre quanto no interior. Eu coloco muito a minha alma dentro dele. Eu tenho que estar muito concentrado, não posso errar uma harmonia e tal. O meu filho Juliano, se ele estiver por aí, deve aparecer. Em Portugal, tínhamos dois violões e teve uma música que ele tocou. Para mim é muito bom. Talvez ele toque se estiver no Recife, mas não sei se ele tem algum compromisso.
Como é que foi o seu Carnaval em 2022? Em Pernambuco não tivemos qualquer tipo de evento, mas alguns outros Estados permitiram alguns shows.
No carnaval, nesse tempo todo, fizemos apenas lives. Respeitamos a pandemia. Nós só fazemos shows em teatro. Tem aquelas normas. Quando tem, tem. Eu sempre fui a favor de cuidar de mim e das pessoas, ter sintonia com a humanidade. Não era o momento de fazer coisas, não fiz nada ilegal. Quando eu gravei uma live, no Rio de Janeiro, não teve público. Uma delas foi num teatro, que estava fechado. Quem ia lá era a nossa equipe. Vamos vencer essa pandemia e temos que ter muito cuidado. Sigo sempre os protocolos da OMS. Mas adoro fazer show de carnaval. Tenho vários tipos de shows: o Alceu do carnaval, o Alceu do São João. Quando vou para um festival de pop ou rock, como agora antes da pandemia, pego uma banda para fazer uns improvisos.
Falando em festivais, você enxerga um constante rejuvenescimento no seu público? Alguns festivais em que você foi confirmado recentemente, como Turá (São Paulo), Fervo (Recife) e Breve (com o Grande Encontro, em Belo Horizonte), possuem públicos bem jovens.
Acho que isso é uma coisa natural. A rapaziada sempre foi, agora vai ainda mais, impulsionado pelas redes sociais. Fiz uns show agora em Balneário Camboriú, São Paulo e Rio de Janeiro que só tinha gente de no máximo 30 anos. Essa renovação acho que veio em função da internet. Você encontra 210 milhões de acessos em apenas um vídeo meu. Também tem gente se emocionando na Rússia, nos EUA, na Inglaterra. A rapaziada fica ligada nesse tipo de música que faço. A anglofonia [identidades culturais existentes em países falantes da língua inglesa] caiu muito com a internet. E isso foi bom para a gente, nesse sentido.
Existem algumas pessoas mas críticas ao impacto da internet na música brasileira, sobretudo em relação às músicas consumidas pelos jovens. Como você enxerga isso?
É que na internet eu posso gravar, como o meu vizinho também pode. É uma coisa mais democrática. Antigamente você tinha a gravadora que impunha aquilo dali. Você só tinha acesso a música em inglês. Hoje temos muito menos isso. Havia um tempo em que você conseguia ouvir música portuguesa, francesa, italiana. Eu ouvia quando era menino, nas rádios, mas depois as grandes gravadoras tomaram conta de tudo e cresceu o consumo de música em inglês. Aí entrou o jabá, que era inacreditável. O que eu quero dizer, no meu caso, é que nunca houve uma viralização tão natural. Teve um dia que estava em Lisboa, vi um grupo tocando, fui lá e cantei com eles. Viralizou. Estava eu na Avenida Paulista, vi um rapaz tocando e fui lá. Outro viral.
O público jovem também costuma consumir remixes de músicas suas. Você já chegou a ouvir alguma?
Ouço muito pouco, eu não ouço música. Vou explicar o porquê... Meu pai não queria que eu fosse artista. Naquela época, era ainda mais complicado e ele via que era difícil seguir uma carreira dessa. Meu pai não tinha nem uma radiola. A primeira que tive lá em casa foi de quando passei na faculdade de direito. Depois de formado fui para o Rio tentar a minha carreira, daí não tenho esse hábito de ouvir música. Dentro de uma música minha, chamada "Cinco Sentidos", canto: 'Pelos ouvidos passaram a voz do rádio, sabiá, bem-te vi, e o vento música nos pés de capim'. Então, essa minha formação musical foi bem natural. O pessoal no interior tocava viola e sanfona de oito baixos, todos amadores. Quando fui pro Recife, morando na Rua dos Palmares, ouvi Elvis Presley pela primeira vez. Foi o único Elvis que ouvi na vida, na casa da minha tia.
E até hoje você não escuta música?
Ouvir música é uma questão de hábito. Há uns cinco ou seis anos, a minha mulher comprou para mim uma radiola. Aí veio o tal de Spotify, que também não sou de ouvir. Sou uma pessoa meio agitada. Ando na rua todo dia, tenho que fazer no mínimo 10 mil passos. Eu gosto de andar, de conversas, de ler. Atualmente toco muito violão pra matar o tempo. A minha onda é a estrada. Uma pessoa que vive como eu, na estrada, não consegue ter tanta relação com as coisas que estão dentro de casa. Eu vivo o tempo todo seguindo na estrada, por isso canto tanto sobre elas.
A Casa Estação da Luz, por muito tempo conhecida como "Casa de Alceu Valença", em Olinda, vem recebendo vários eventos desde o final de 2021. Existe alguma novidade em relação a ela? Como, por exemplo, a exposição permanente sobre a sua carreira?
Sobre isso, eu quase não vou lá. Quem cuida é a minha mulher, à distância, e a Natália (Reis, sócia do projeto), que toma conta lá. Tem alguns eventos que são para favorecer pessoas que estão começando a também dar uma certa visibilidade para elas. Então, muita gente tá fazendo show lá. Não estou presente no sentido físico, mas na minha cabeça estou tentando impulsionar a cultura da minha terra. É uma casa de saber, é uma casa que poderá ter uma exposição permanente minha, meio virtual também. Não fizemos agora por conta da pandemia. Enfim, a casa serve, sobretudo, para impulsionar a cultura nossa. É o frevo que aparece lá, os artistas novos que estão começando.