"História íntima". Uma expressão do escritores franceses Jules (1830-1870) e Edmond de Goncourt (1822-1896) que diz respeito à busca das camadas mais ocultas e secretas da história, inclusive as mais privadas e indiscretas. Não por acaso o termo foi incluído no título do livro "A história íntima de Gilberto Freyre", que o jornalista e escritor Mario Helio Gomes lança nesta terça-feira (21), com evento aberto ao público na Casa-Museu de Apipucos, Zona Norte do Recife, às 18h.
O próprio Freyre foi bastante inspirado pela ideia de "história íntima", tanto que "Casa Grande & Senzala" (1933), sua obra canônica, chamou atenção por desvelar detalhes e segredos das aristocracias brasileiras (sobretudo nordestinas) durante a escravidão.
Apesar do título soar como uma espécie de biografia, o livro de Mario Helio vai além disso. Ele também fala sobre vida e obra, mas mergulha em conceitos e inspirações que guiaram o intelectual Gilberto Freyre - tendo, por isso, certa carga acadêmica. O lançamento é uma nova edição de sua tese de mestrado, defendida em 1993.
"Ao mesmo tempo em que não é uma biografia, não nega os episódios biográficos que são importantes para mostrar o tipo de história que ele fazia e como ele se insere na história. Não só a história vista com intimidade, mas também como o indivíduo Gilberto Freyre esteve nessa história. Não como homem neutro, ou como uma pessoa distante e objetiva. Era exatamente o contrário", diz Mario Helio ao JC.
"A tentativa é de revelar a intimidade, tirando camadas de um autor complexo, que parece simples e fácil, mas na verdade não é. É tentar traduzir para as novas gerações as temáticas que ele abordou há um século atrás", continua o pesquisador, mencionando que o mestrado de Gilberto Freyre no defendido na década de 1920.
No livro, o escritor também ressalta temáticas que Freyre aborda e que continuam bastante caras à atualidade, como a temática racial (que é o pilar de Casa Grande & Senzala) e também, mesmo que em menor grau, gênero e sexualidade. Também fala sobre fatos pouco lembrados, como sua polêmica com Josué de Castro.
"Poucos autores brasileiros do prestígio dele tiveram a coragem de se apresentar de corpo inteiro ao homoerotismo. É algo que ele não só defende na obra, como na própria vida, quando assume experiência e abertura para esse tipo de assunto. São tópicos discutidos no livro de algum modo. Ele era um homem, então foi imperfeito e contraditório, mas que muitas vezes é comentado sem ser lido", diz.
Mudanças na imagem pública e revisionismos
Em 1993, quando Mário Hélio Gomes defendeu a sua tese de mestrado, o sociólogo pernambucano ainda estava voltando a ser redescoberto pela academia após um período de ostracismo - que ocorria por diversos motivos, entre eles seu apoio ao golpe de 1964.
"O Brasil nem estava tão radicalizado em termos ideológicos, mas Freyre era visto como interesse secundário, não-científico e literário. Eram ataques por um olhar paulista de sociologia. Com a redescoberta dele, determinadas pautas, como a própria história da vida privada dele, voltaram”, diz Mário Hélio, que opina que Freyre é bem mais estudado hoje, apesar de todas as controvérsias.
"Alguns clichês em torno dele continuam da mesma maneira. É uma visão curiosamente negativa que se tem dele a partir da postura que ela adotou em relação a questões raciais. Muitos grupos o veem como racista, mas nenhum autor falou mais da mestiçagem de tal maneira positiva. A democracia racial também surge como um clichê, como se defender o convívio entre as diversas culturas fosse negar o racismo no Brasil”.
Apesar de rebater críticas constantes, o escritor admite tópicos vulneráveis de Freyre no livro. "O que agora vemos cada vez mais nítido é a violência no Brasil. Ele termina por amenizar, pois a visão dele do país é tão generosa que ele preza pela resolução dos conflitos. Quando ele tenta defender o Brasil como um país de equilíbrio, termina por adocicar as relações sociais. Acho que são questões que precisam ser revistas".
Mário Hélio finaliza reforçando que a proposta do novo livro é fazer com que se leia a obra para se compreender melhor uma nação. “Um país que, enquanto independente, está fazendo 200 anos, mas como experiência histórica já tem mais de cinco séculos. Fundamentalmente, toda a obra de Gilberto Freyre tem uma tentativa de entender o país em que nós estamos”.