"-E se Deus é eterno, o que Ele estava fazendo antes de criar todas as coisas?", um espírito debochado pergunta a Santo Agostinho. "- Ele estava criando o Inferno pra colocar lá dentro gente que faz esse tipo de pergunta", respondeu. Mas a resposta "séria" é: "Ele não havia criado nada, nem o tempo. Logo, a pergunta o que Ele estava fazendo ANTES não tem sentido!" (Confissões. Livro XI).
Agostinho é responsável por criar esse nosso tempo tripartite, cada momento correspondendo a um investimento subjetivo: ao PASSADO a lembrança; ao PRESENTE a atenção; ao FUTURO a esperança. E foi assim que as filosofias da história modernas retomaram o mote agostiniano para oferecer à história a noção de Progresso: nós não somos ainda aquilo que deveríamos ser (nem como indivíduos, nem como sociedade), e vem daí nossas noções tão "pedagógicas" de "ser-mais" (Freire) ou de "perfectibilidade" (Kant, Rousseau). Acreditamos, pois, que o Pedagógico realizará no tempo (na História) aquilo que devemos ser!
Cada cultura consagra ou valoriza uma dimensão do tempo: para os latinos era o Passado, a homenagem devida aos fundadores da Cidade; para os modernos, o Futuro (a realização da utopia). Mas parece que nós, hoje, nem valorizamos mais o passado - que não tem mais nenhuma força normativa, nem autoridade-, nem o futuro -com a descrença em utopias de reconciliação social-: estamos atados ao Presente, não porque e História "termina" aqui, mas porque nem a lembrança, nem a atenção, nem a esperança têm mais o mesmo peso e valor em nossas disposições subjetivas ou coletivas.
Ver o fascismo avançar nas sociedades democráticas; as tecnologias se tornando autônomas; as relações sociais se degradando; a política transformada em gestão das almas; as relações de mercado dominando a educação; o valor do saber elaborado rebaixado à vulgaridade; a morte como política de estado; as epidemias, a violência urbana, o feminicídio, as guerras televisionadas, a limpeza ética e social em nome do "direito de defesa", os massacres policiais, as milícias urbanas, genocídios dos povos originários... não nutrem em mim nenhuma expectativa muito positiva em relação ao futuro.
Claro que gostaríamos que, na passagem do ano, o tempo fosse cortado e algo "NOVO" começasse. Dividir o tempo sempre foi uma necessidade cultural: tempo CRONOLÓGICO (os dias, as horas), HISTÓRICO (Idade Média, Moderna), SUBJETIVO (infância, adolescência), NATURAL (verão, inverno), RELIGIOSO (a vinda do Messias, Apocalipse), ECONÔMICO (tempo de trabalho necessário, tempo de trabalho não-pago), PEDAGÓGICO (o tempo que necessito para ser o que preciso ser)... são apenas representações simbólicas que toda cultura precisa para se constituir como continuidade e ruptura e se oferecer uma identidade agregadora, uma distinção e ao mesmo tempo poder imaginar que nos "realizaremos", como Humanidade, numa esquina do tempo, numa ruptura qualquer (revolução, realização da liberdade).
Estamos a meio caminho de um PÓS-HUMANO que não havia sido previsto pelas utopias nem pelas distopias. O problema é que simplesmente não podemos apontar o dedo para um culpado sentado num banco dos réus (como em Nuremberg). Graham Greene dizia que não há inocentes: "-Toda inocência é uma forma de insanidade!", e Giorgio Agamben vaticinou que Auschwitz era apenas a experiência piloto da sociedade política futura!
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Juro que tentei me salvar das injunções do Tempo pela "Astrologia Dialética" (em meu artigo anterior), mas até nisso fracassei redondamente: meu querido colega e Diretor da Faculdade de Direito, Torquato Castro, percebeu imediatamente a ausência do signo de Aquário em minha recém criada Astrologia. Ai de mim! Que o opróbio me cubra o corpo! Nem pelos astros encontro consolo e salvação!!! Vou tentar a ASTROLOGIA JURÍDICA que, assim como o STF, que tem apenas 11 Ministros, a minha terá apenas 11 signos. Sugiro eliminar o meu, Touro, e assim elimino o TEMPO de minhas lembranças, de minha atenção, de minhas esperanças...
Flávio Brayner, professor emérito da UFPE e Visitante da UFRPE