Tive a oportunidade de ler, recentemente, muitos artigos e ensaios relativos à passagem dos 60 anos do golpe civil-militar-empresarial de 1964. Em geral, tais artigos tratam das articulações que levaram ao golpe; seus personagens; as decisões autoritárias que o seguiram; as perseguições, assassinatos, sequestros, prisões ilegais, covas clandestinas, torturas sob orientação “técnica” (lembrem que o agente americano Dan Mitrioni - depois assassinado pelos Tupamaros no Uruguai- comandou pessoalmente a tortura da Professora Naíde Teodósio, aqui em Recife).
Em 1985 eu mesmo defendi uma dissertação no Mestrado de História que tratava do tema, mas abordando-o à partir de um outro ângulo: o papel exercido pelo PCB (Partidão) nos anos anteriores ao Golpe.
Tentei mostrar – e acho que com sucesso, mas sob protesto de Paulo Cavalcanti, que não concordava com minha tese !-, que boa parte do autoritarismo de nossas esquerdas de então derivava da própria concepção de “partido revolucionário” teorizada por Lênin (“Que fazer?”): o partido como “consciência de um processo inconsciente”, como “representação” da classe operária e como “vanguarda consciente”.
Breve: uma “classe operária” absolutamente residual no contexto de nossa industrialização tardia e geograficamente concentrada(o Censo de 1960 indicava uma porcentagem de 63% da população habitando o campo!), “alienada” e precisando de vanguardas conscientes para não deixá-la cair nas tentações da vida burguesa.
A grande contribuição de Lênin fora, na verdade, o conceito de Partido Revolucionário (Marx falou de uma Internacional, mas não de um partido). E lembro que Lênin teve problemas com o decano do marxismo russo, George Plekhanov, sobre o assunto: se Marx e Engels haviam descoberto as “LEIS” do desenvolvimento histórico, a criação de um “partido” não fazia sentido: não se cria um partido para promover a próxima primavera ou para garantir a chegada da Lua cheia, ele dizia!
O fato é que, o ambiente intelectual nacional, anterior ao Golpe, influenciou nossas esquerdas, e esse ambiente fora produzido pela ideologia nacional-desenvolvimentista produzida pelo ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), onde pontificaram nomes da envergadura de Hélio Jaguaribe, Nélson Werneck, Roland Corbusier, Álvaro Vieira Pinto, de um lado, e pela denúncia dos crimes cometidos por Stálin, durante o XXº Congresso do PCUS, sob a batuta de NikitaKruschev.
Em 1954, Jacques Lambert (que participara da missão francesa que fundara a USP em 34), publicou seu intrigante “Os Dois Brasis”: a tese era de que o Brasil não era um país subdesenvolvido, como se apregoava: era um país desigualmente desenvolvido, mas estruturalmente articulado, quer dizer, a parte “desenvolvida” (São Paulo) se alimentava do subdesenvolvimento das outras partes, sem o quê, não se sustentaria.
Surge uma teoria que ficou conhecida como “DUAL ESTRUTURALISTA”, que teve forte incidência na criação do Grupo da Mantiqueira (que criou o ISEB) e promoverá uma visão “dualista” de nossa realidade nacional: nacionalistas X entreguistas; povo X anti-povo; nação X anti-nação; consciência nacional X alienação; oprimido X opressor; consciência ingênua X consciência crítica (sim, pessoal, nosso querido Paulo Freire também foi influenciado pelo ideologia Isebiana, e quando a professora Vanilda Paiva trabalhou tal influência numa tese, isso lhe valeu a condição de “apóstata” do paulofreireanismo!).
O interessante é que no conceito de POVO dos isebianos cabiam, vejam só, a burguesia nacionalista, o proletariado urbano, a classe média nacionalista, os intelectuais progressistas e o campesinato sindicalizado...; e o ANTI-POVO compreendia a burguesia dependente, a UDN de Carlos Lacerda, os latifundiários, a pequena burguesia reacionária e alguns setores da Igreja Católica.
Assim, diante de tal amálgama político e social, não havia nenhum problema em que o Partido Comunista apoiasse o grande empresário José Ermírio de Moraes pra o Senado em 1962, aqui em Pernambuco! E foi assim que a “luta de classes” terminou, entre nós, como diria Antônio Cândido, “no exótico, no apimentado, no gorduroso!”.
É aqui onde entra a segunda inflexão: a “Declaração de Março” de 1958 do PCB, advoga uma linha política conhecida como “coexistência pacífica” com os setores “progressistas”, mesmo pertencentes à “burguesia capitalista”.
Ora, ora: em nome do “etapismo” (toda sociedade, segundo Marx, passa por etapas sucessivas e definidas de modos de produção e relações de produção), a próxima “fase” do desenvolvimento social e econômico brasileiro não era o Socialismo, mas o Capitalismo Industrial ainda desigualmente desenvolvido, que preparava a emergência qualitativa e quantitativa do “proletariado”, que no momento histórico certinho, faria sua revolução!
Deixo claro que não estou inventando nada, embora tudo o que acabei de narrar tenha ares de fábula ideológica, de delírio político, de mitologia progressista..., fundada numa determinada teoria ou filosofia da História.
Que época! Aliás, muitas das nossas correntes políticas ainda se fundam teoricamente nessas ideias, que cumprem, a meu ver, um papel de comodidade do pensamento, de muleta ideológica, numa época tornada camuseanamente “absurda”, mais do que de certeza utópica nos “lendemainsquichantent” (futuros radiosos).
Havia, pois, antes de 64, mais do que uma articulação golpista de setores empresariais, civis e militares para suprimir uma frágil ordem democrática e de forte tonalidade populista: havia uma clima intelectual “progressista” baseado numa filosofia da história que criou uma atraente mitologia sobre a História e seu suposto “desenvolvimento”.
DOCUMENTO DA BIBLIOTECA DO EXÉRCITO
Num documento que encontrei na Biblioteca do Exército (RJ) sobre a queda do PCB nas mãos da Polícia de Pernambuco, em 1954, documento organizado por Álvaro da Costa Lima e Armando Samico, nomes ligados à mais severa repressão praticada pelo governo de Cordeiro de Farias (1954-58), naquele documento, retomo, estavam as pequenas autobiografias que os candidatos ao ingresso no PCB deveriam submeter ao Secretariado Estadual.
Numa delas, de um comunista que depois se tornou astrólogo (uma “evolução que considero, digamos, “natural”!), pode-se ler: “Eu praticava o hábito pequeno-burguês da masturbação, mas depois que fui aceito no Partido, livrei-me dele”... Imagine, caro leitor, os comunistas no poder em Pernambuco e um Projeto de Lei para suprimir a conhecida “justiça com as próprias mãos” (que seria substituída pela única justiça aceita: a Justiça Revolucionária!).
Mas, apesar de tudo, como eram gostosas (sem trocadilho!) nossas ilusões!
Flávio Brayner, Professor da UFPE e da UFRPE