Dor, fadiga, medo: A rotina dos profissionais de saúde curados da covid-19 na volta à linha de frente

Governo de Pernambuco divulgou que 90,7% dos profissionais infectados com a covid-19 estão curados
Maria Lígia Barros
Publicado em 06/07/2020 às 16:47
Segundo o Governo Estadual, 15.547 trabalhadores foram diagnosticados com a doença até a quinta-feira (2) em Pernambuco Foto: AFP


A técnica de enfermagem Cássia Joana Bezerra, de 31 anos, é uma das profissionais da linha de frente no combate à covid-19 em Pernambuco. Além de atuar no Cisam, no Centro do Recife, e na UPA Dom Hélder Câmara, no Vasco da Gama, na Zona Norte, Cássia foi escalada para o remanejamento de trabalhadores nas demais UPAs da cidade, onde realiza a triagem de pacientes.

Na metade do abril, no entanto, precisou ser afastada das unidades de saúde depois de apresentar sintomas de dor de cabeça, quando o Recife encarava uma crescente de casos do novo coronavírus. O resultado positivo do teste chegou dez dias depois, forçando-a a ficar mais duas semanas em casa, totalizando 19 dias em isolamento domiciliar.

Cássia faz parte dos 14.103 profissionais de saúde que testaram positivo para a covid-19 entre 12 de março a 30 de junho de 2020 em Pernambuco e estão recuperados. O número, divulgado pelo Governo do Estado na última quinta-feira (2), corresponde a 90,7% do total de 15.547 trabalhadores diagnosticados com a doença no período.

A estatística, no entanto, não mostra o medo e as sequelas que acompanham a volta à linha de frente do combate à pandemia. Desde que Cássia retomou o trabalho, as mazelas persistem. “Voltei dia 4 de maio e até hoje sinto fadiga, muito cansaço, dores de cabeça e dor nas costas”, relatou.

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Mesmo com a persistência dos sintomas, precisou permanecer na ativa. “Eles não afastam a gente por causa disso. Passou o tempo de contaminação, a gente tem que voltar, independente de estar sentindo alguma coisa ou não”, revelou a técnica de enfermagem.

As faltas são sentidas em muitos aspectos. Segundo a técnica, não houve assistência de saúde nem mesmo durante a doença. “Só fui para a emergência, fiz o SWAB (teste RT-PCR para coronavírus), depois fiquei livre”, denunciou. O período de afastamento não é vivido sem pressão. A falta de profissionais para cobrir as ausências dos que adoecem demanda um retorno rápido. “Das 7 pessoas do meu plantão, todas deram positivas. Ficou aquele buraco”, disse.

Os profissionais da área de saúde também sentem que falta apoio junto àqueles que contraíram o novo coronavírus. Ausência de acompanhamento médico, de amparo psicológico e de tratamento fisioterapêutico são algumas das queixas mais comuns. "Teve um colega meu que faleceu. A gente ficou muito abalado mas tinha que continuar, e não teve nenhum apoio psicológico. A gente sentiu muita falta", afirmou Cássia.

A vivência da técnica de enfermagem Sandra Regina da Silva, 42, foi similar. Originalmente da enfermaria de infectologia, ela foi movida para a UTI da covid-19 do Hospital das Clínicas (HC) quando a crise se instaurou no Estado. No primeiro plantão no novo setor, começou a apresentar sintomas e foi afastada de 21 de abril a 4 de maio. O diagnóstico foi confirmado no 13º dia de isolamento.

CORTESIA - A técnica de enfermagem Sandra Regina da Silva, 42, trabalha na UTI da covid-19 do Hospital das Clínicas

“Eu fiquei muito receosa de poder transmitir para alguém. Você é obrigada a voltar 14 dias depois. As pessoas me discriminavam por ter tido covid-19. Até na hora de bater ponto, as pessoas não queriam ficar perto. Eu me sentia horrível. Me perguntavam: 'Mas tu já voltou?'. Eu tenho que voltar", contou Sandra.

A sensação de medo entre os trabalhadores persiste até hoje. “Todo mundo preocupado em se desparamentar - o paramentar é fácil, todo mundo com os materiais limpos. Mas a desparamentação exige mais atenção, é o momento de estresse. No intervalo a gente toma banho, troca de roupa, quando larga toma outro banho. Não leva toalha, não leva lençol, nada para UTI, só a necessaire com o mínimo”, descreveu.

Sandra acredita que a pandemia vai deixar problemas psicológicos em muitos colegas da área de saúde. “Eu tenho amigas que foram afastadas antes da pandemia começar com auge, só na espera de chegar esses pacientes”, lamentou.

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Esses motivos também são apontados pelo presidente do Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos em Enfermagem de Pernambuco (Satenpe), Francis Hebert, para criticar os números divulgados pelo Governo. A categoria corresponde a 25,7% dos profissionais de saúde que testaram positivo para a covid-19 em Pernambuco, mas ele acusa a subnotificação de casos.

SES-PE - Distribuição dos profissionais de saúde confirmados para covid-19 em Pernambuco segundo categoria

"Primeiro, não teve testagem com clareza. Só os sintomáticos foram testados. Segundo que não tem re-testagem - passou 14 dias, pode voltar se melhorar. E terceiro é que muitos profissionais trabalham até doente, não se afastam. Quando o Estado traz uma estatística dessa, é até de ficar abismado por conta da falta de verdade”, declarou Hebert.

Nos cálculos do sindicato, 58% dos auxiliares e técnicos de enfermagem estão contaminados com o coronavírus. “Desse total, tem mais de 30% que precisa de acompanhamento médico e fisioterapêutico”, falou o presidente do sindicato.

“O Governo realmente está colocando à disposição, mas não atende à demanda. De maneira geral, o nosso profissional não está tendo acompanhamento médico e terapêutico pós-covid-19”, alegou. “E o agravante: é preciso acompanhamento psicológico para esses profissionais. Eles não têm segurança. A maioria dos profissionais está sofrendo de síndrome do pânico e depressão”, complementou.

Francis classifica a condição como sub-humana. “Os governos estadual e municipal e a rede privada não querem reconhecer a infecção causada em meio profissional como um contexto de causa do trabalho”, declarou.

Na visão do sindicalista, a má remuneração é um empecilho que obriga os trabalhadores a voltarem ao trabalho antes de estarem prontos. “Muitos se submeteram a trabalhar mesmo doente para não ficarem sem dinheiro ou demorar a receber. Se colocar atestado, na rede privada vai para o INSS, que passa 60 a 90 dias para receber. O estado paga R$ 774. Você acha que um trabalhador desse, indo para o benefício, vai ter condições de sustentar sua família?”, indagou. “Quando a escolha é entre morrer de fome (na pandemia) ou da covid, você prefere a covid.”

Segundo ele, a maioria dos profissionais da classe teve um desconto de quase 50% na gratificação que recebem via SUS, bônus que é somado ao salário base de R$ 774. “É o modo de prender o trabalhador mesmo doente ao trabalho”, opinou.

Apesar de os técnicos de enfermagem serem a maior parcela dos profissionais de saúde testados no Estado, todos estão vulneráveis. Os médicos aparecem em quarto lugar na lista, com 1.131 infectados - uma representação de 7,3% dos casos.

O secretário Geral do Conselho Regional de Medicina (Cremepe), Mário Jorge Lôbo, mencionou a insegurança científica que se tem acerca do novo coronavírus como um agravante do medo que perpassa a população, sobretudo trabalhadores de saúde.

“O mundo ainda não sabe como vai se portar com esse retorno. Não se sabe se existe a possibilidade da recontaminação. Há o temor da não-imunização (após o contágio). Isso torna desconfortável para quem sofreu. É uma situação psicológica real”, falou.

O ortopedista reconheceu que a classe médica, por característica da camada social, costuma ter acesso mais ampliado aos planos de saúde que outras categorias. “Com isso, acaba tendo seu acompanhamento terapêutico e de apoio no laço da iniciativa privada. Porém, o Estado é o grande empregador. Se para o médico isso talvez tenha um impacto menor, outros trabalhadores, principalmente os auxiliares de enfermagem, têm que se voltar para a assistência pública.”

“Não é porque uma classe A ou B tem uma estrutura social diferenciada que não seja obrigação do Estado prover. Eu entendo que ele tem que prover, ou cobrar de qualquer empresa, o mínimo de segurança ao seu trabalhador”, demandou.

Ele cobra o reconhecimento da insalubridade como parte da atividade de saúde. “É uma remuneração destinada a trabalhadores de área de risco de contágios biológicos”, definiu.

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“O trabalhador da área de saúde já é, por característica de sua profissão, exposto a patologias infectocontagiosas. E não existe a valorização dos profissionais com a relação a isso. É um aspecto que o Estado precisa rever e corrigir, que é uma precarização e que traz insegurança para a família do trabalhador”, defendeu.

Na sexta posição de categoria de profissionais de saúde diagnosticados com a doença, com 619 pessoas (4%), os agentes comunitários de saúde também enfrentam o desafio de se expor novamente ao vírus após a cura.

Priscila Naara, 27, adoeceu na primeira semana de abril, após contato com paciente que estava com um quadro gripal. A agente teve congestionamento nasal, tosse e fadiga e se afastou por duas semanas das atividades na UPA Dom Hélder Câmara. De volta ao trabalho, deu três plantões até que novos sintomas reapareceram. “Comecei a sentir o corpo esquentado, como se fosse uma coisa tardia da doença. Precisei me afastar mais 10 dias”, relatou.

“Eu e outros colegas que tiveram ainda se sentem desfalecidos ainda. Eu estava contando para minha chefe como ainda me sinto fatigada. Nossos casos foram leves, não ficamos entubados, mas é uma doença que deixa seu corpo debilitado.”

Levantamento do Centro de Doenças Infecciosas do Hospital Princess Margaret, em Hong Kong, mostrou que 25% dos curados tiveram perda da função pulmonar de 20 a 30%. O resultado indica a necessidade da continuidade do tratamento após a recuperação.

A fisioterapeuta Anakettlem Santana explicou que a não realização de fisioterapia pode deixar efeitos persistentes no organismo. O comprometimento dos sistemas respiratório e cardíaco é o mais comum. “Se for um paciente mais grave ele vai estar sempre com um sintoma respiratório - dificuldade para respirar, desenvolver crise asmática. Por isso é sempre estar acompanhado por um agente”, falou.

Governo do Estado oferece programas para servidores da saúde

Diretora geral de gestão do trabalho da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, Vanessa Diniz esclareceu em entrevista ao JC que o protocolo da rede estadual de saúde define que o trabalhador que contrair a doença só deve retomar às atividades após 14 dias e 72h sem apresentar sintomas. Em caso de os sintomas retornarem, a orientação é que o profissional volte para casa.

A gestora confirmou que só casos sintomáticos são testados para o vírus. "Como a gente começou (a testagem) em abril, e já tinham algumas pessoas que tinham tido a doença em marcha, a gente faz também em quem já referiu que teve a doença."

São feitos dois tipos de análise: o RT-PCR (SWAB), até o sétimo dia de sintoma; e o teste rápido, a partir do décimo dia. A diretora explicou que é por isso que não é feita a retestagem. “Se a gente viu que a pessoa teve a doença pelo RT-PCR, não tem necessidade. Se fizer a retestagem a partir dos 15 dias, só vai reafirmar que ela já teve a doença.”

A porta-voz afirmou que existem programas do Governo de Pernambuco voltados exclusivamente para a saúde dos profissionais da área. Alguns são exclusivos para servidores do Estado, mas outros abarcam todos trabalhadores da linha de frente. Veja:

Acolhe SES - Programa de acolhimento psicoterapêutico para servidores estaduais. Foi implantado em 30 de abril e atendeu mais de 300 pessoas. “Desses, 40% são técnicos de enfermagem que está com algum tipo de sofrimento, conflito emocional, ansiedade, devido à pandemia, e os familiares. O atendimento é feito através de telefone, para o Estado, pelo 0800 081 4100”, falou.

“A principal queixa dos servidores (49%) é de conflitos emocionais e ansiedade”, pontuou. O profissional que aciona o programa é acolhido pela equipe de psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, profissionais de práticas integrativas e assistente social.

“Se o profissional de saúde que está atendendo viu que a pessoa está precisando de atendimento mais direcionado a psicóloga ou psiquiatra, ele redireciona. Além disso, a gente tem também terapias de práticas integrativas.” Essas práticas são opção aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde como tratamento alternativo, incluindo, por exemplo, técnicas de respiração.

Covid-19 Assiste - Aplicativo gratuito para profissionais de saúde de todas as redes. “Lá dentro podem encontrar protocolos atualizados, de acordo com o que é preconizado pelo Ministério da Saúde, diretrizes clínicas e um calendário em que o profissional pode ver os seus sintomas diários”, detalhou Vanessa. Até sexta-feira (3), 82 pessoas já estavam cadastradas no app.

Medvelox - Aplicativo mensageiro, similar ao WhatsApp, é uma rede segura para os médicos conversarem entre si e com outros profissionais de saúde sobre condutas médicas a serem desenvolvidas a pacientes, inclusive com compartilhamento de exames. Há 70 usuários cadastrados. Aberto para todo o Estado.

Cursos online - A Escola Pública de Saúde disponibilizou no seu site cursos introdutórios sobre a covid-19. “Qualquer pessoa pode acessar, mas a maioria são servidores de saúde. Tem cursos específicos de ventilação mecânica, para médicos, tem um ambiente virtual com lives gravadas e conferências”, citou. Todo material é gratuito. O portal divulga os boletins de saúde e protocolos da covid-19.

 

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