Num Pais que prega o acesso à educação como direito de todos, Marcelly e Alisson ficaram para trás. Ela tem 25 anos. Ele, 24. Morando juntos há seis anos, o casal abandonou a escola, sem concluir o ensino básico. Ambos estão desempregados. Ela parou no 2º ano do ensino médio. Ele, no 1º. Marcelly deixou a sala de aula após engravidar aos 16 anos. Alisson, porque precisava trabalhar. Não estão sozinhos nessa exclusão. Por ano, em média, quase 600 mil alunos abandonam a escola antes de completar os 12 anos da educação básica. Um número que, no pós-pandemia, ameaça pipocar. A suspensão das aulas presenciais, a exclusão digital e a incerteza que envolve a volta à escola se somam à pressão para garantir uma renda, qualquer uma, diante de níveis recordes de desemprego. O aumento da evasão escolar está hoje no centro das preocupações de educadores, especialistas e de quem compreende a educação como eixo basilar de desenvolvimento do País. Muitos não voltarão. Uma ausência que não compromete só o futuro dos jovens. Representa uma perda de bilhões de reais para o Brasil. Custa muito mais caro deixar o estudante ir embora do que mantê-lo na sala de aula.
Pela primeira vez, uma pesquisa quantificou o tamanho das perdas provocadas com a evasão escolar. Calcula-se aqui o custo de não fazer. O prejuízo por não educar. As cifras chegam a impressionantes R$ 214 bilhões, por ano. Algo em torno de 3% do Produto Interno Bruto brasileiro. O estudo inédito produzido pelo Insper, em parceria com a Fundação Roberto Marinho, mostrou que deixar crianças e jovens fora da escola custa quatro vezes mais caro que o investimento feito pelo Estado para garantir que eles concluam a educação básica. Cada estudante que abandona a sala de aula gera uma perda de R$ 372 mil por ano. Já o custo de mantê-lo na escola até o fim do ensino médio é de R$ 90 mil. A conta, feita pelos economistas Ricardo Paes de Barros e Laura Machado, ambos do Insper, escancara o quanto abandonar a escola é trágico para o jovem. Mas revela-se igualmente custoso para o Brasil.
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Para traduzir em números o prejuízo de não priorizar a educação, o estudo projetou as perdas ao longo da vida direta do jovem e a riqueza que ele deixa de produzir para o País. É o que os pesquisadores chamam de externalidades. O cálculo leva em consideração que aqueles que não concluem os estudos enfrentam dificuldades maiores para conseguir um emprego formal, ganham menos, têm uma qualidade e expectativa de vida menores (pelo menos quatro anos a menos) e estão mais expostos à violência, seja como autores ou vítimas.
Quando se avalia a relação custo-benefício, é chocante o desperdício de dinheiro público. "Sob todos os aspectos, é um prejuízo enorme deixar esse garoto ir embora. Vale muito mais a pena gastar um pouco mais com ferramentas e diagnósticos precisos que ajudem a mantê-lo na escola do que simplesmente abrir mão desse aluno", afirma a economista Laura Machado. Ela ressalta que, ao quantificar as perdas, o levantamento torna-se instrumento importante para orientar gestores públicos na tomada de decisão. "Há um argumento econômico contundente para justificar políticas assertivas de combate à evasão escolar."
Os números apontados pelo Insper chegam em um momento dramático. Diferentes pesquisas, todas divulgadas durante a pandemia da covid-19, mostram o impacto negativo que o isolamento social e a distância física da escola estão provocando nos alunos. A consequência mais direta e tangível acende um alerta perigoso: o risco de explosão dos índices de evasão escolar. O temor é de que os ganhos obtidos pelo Brasil nos últimos anos possam ser perdidos no pós-pandemia. Pelos menos dois estudos, de diferentes institutos, comprovam esse cenário preocupante.
Na última terça-feira, o Datafolha divulgou uma pesquisa, encomendada pela Fundação Lemann, apontando que 31% dos pais ou responsáveis por estudantes de escolas públicas temem que os jovens desistam de estudar se não conseguirem acompanhar as aulas remotas. Entre os que têm três ou mais estudantes em casa, esse índice chega a 38%. Os inúmeros relatos de alunos sem equipamentos ou sem conexão à internet mostram que o temor é real.
Moradora de Beberibe, na Zona Norte do Recife, Vitória Tomé de Santana, 18, não acompanhou nenhuma das atividades remotas passada pela escola. "Não estou mais estudando, fiquei sem paciência. Sei que vai ser péssimo pra mim, porque não vou saber de nada quando as aulas voltarem", reconhece a jovem, admitindo a falta de motivação para pegar nos livros. O perfil de Vitória preocupa ainda mais quando se olha seu histórico. No ano passado, ela não frequentou a escola. Está no 1º ano do ensino médio e não sabe se vai conseguir terminar os estudos. Para ajudar na renda, passa o dia na feira de Beberibe vendendo frutas no banco da mãe.
"Toda essa pressão causada pela pandemia vai rebater no jovem. É inevitável. Seja pela dificuldade de motivação para os estudos ou porque ele é obrigado a fazer uma complementação de renda. As secretarias estaduais e o terceiro setor precisam agir em conjunto, com ações focadas, para enfrentar o número acentuado de alunos que não voltarão para a escola", pontua o professor e pesquisador Mozart Neves Ramos, coordenador da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), e ex-secretário de Educação de Pernambuco.
A preocupação de Mozart Neves é evidenciada pela pesquisa do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), em parceria com a Fundação Roberto Marinho e a Visão Mundial, sobre a reação dos jovens diante da pandemia. Exatos 28% dos entrevistados com idades entre 15 e 29 anos afirmaram já ter pensado em abandonar a escola, no momento em que as aulas presenciais forem retomadas. Quanto mais velho, maior o percentual dos que admitem a possibilidade de largar os estudos. "É um cenário crítico não só do ponto de vista do indivíduo, mas como perspectiva de construção de País. A gente tem hoje a maior geração de jovens da história do Brasil. Um contingente de 50 milhões de pessoas. Temos uma janela muito curta, talvez de 10 anos, para fazer os investimentos certos, estratégicos, para termos uma população mais educada, com melhor qualidade de vida, nas próximas décadas", avalia o vice-presidente do Conjuve, Marcus Barão.
O risco de o País continuar a produzir gerações que crescem longe da escola se materializa na casa simples, de fachada sem reboco, numa área de invasão, no bairro do Ibura, Zona Sul do Recife. É lá que mora a família de Karla Maria da Silva, 34. Ela é mãe de Weverton e José Welton. O primeiro tem 16 anos. Parou de estudar no 4º ano do ensino fundamental. O segundo, de 18, deixou a sala de aula no 7º ano. Os jovens percorrem o mesmo caminho trilhado pela mãe, que abandonou a escola no 2º ano do ensino médio. É esse Brasil, de mães e filhos, adultos e crianças sem direito à educação básica, que o pós-pandemia ameaça perpetuar. O que já era ruim pode ficar pior.