O tempo parou para Alexsandra de França, de 46 anos. O relógio está suspenso desde a véspera de Natal de 2019, quando um deslizamento de terra atingiu duas casas levou embora sete pessoas em Dois Unidos - entre elas, o filho Emanuel Henrique, 25, a nora, Érica Virgínia, 19, neto recém-nascido, Érick Júnior, de 2 meses. "Parece que aconteceu hoje. Eu me sinto do mesmo jeito", diz. Alexsandra é uma das onze sobreviventes da tragédia - todos da mesma família. Assim como ela, parte ainda mora na Rua Bela Vista, no Córrego do Morcego, de frente aos escombros que restaram dos imóveis destruídos. Todo dia, quem permanece no local se depara com o cenário de ruínas.
Naquela madrugada do dia 24 de dezembro, os parentes se reuniam para passar o Natal junto a mais duas amigas, que também não resistiram à tragédia. A terra veio abaixo depois de um cano de água se romper por baixo da barreira.
Uma falha pela qual ninguém ainda foi responsabilizado. Após quase nove meses, não foram identificados culpados e as pessoas não foram indenizadas. Os sobreviventes aguardam o laudo definitivo da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), a conclusão do inquérito da Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) e as reparações do Governo de Pernambuco - processos que atrasaram por conta da pandemia do coronavírus que atingiu o Estado em março. Agora, com a flexibilização das medidas restritivas, a família questiona a falta de respostas.
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Só a justiça para fazer o relógio voltar a andar. “Fui ontem visitar uma amiga, ela disse: ‘poxa, nove meses e teu rosto está a mesma coisa’. Mas eu vou fazer o quê? Talvez mais na frente, se ver que as coisas estão se resolvendo, estão andando, você vai sentindo aquele alívio. Mas não vai esquecer. A ferida vai secar, mas a cicatriz fica ali. Você sempre vai saber o que foi. Vou guardar no meu coração. Mas (hoje) você olha e vê isso aí. Já vai chegar um ano e nada. Ninguém fala nada. Não chega nada”, conta.
“A gente fica angustiada, triste, ansiosa. Queria tanto que resolvesse esse negócio, para ter um alívio. Para ver se a gente vai ter um sossego, um descanso”, declara Alexsandra.
A família que se juntava para festejar a vida hoje não encontra mais razão para celebrar. “Antigamente, era uma alegria. Eu só gostava de estar na rua, estar andando, comprando alguma coisa. ‘Hoje a gente vai fazer um churrasco’. ‘Comemorar o quê?’. ‘Que a gente está aqui vivo, com neto, que a senhora está bem, que minha irmã vai chegar da Paraíba’. Tudo era um motivo de rir. Hoje não tem”, conta.
A rotina virou outra. Os problemas de saúde pioraram, e a memória também não é mais a mesma. Alexsandra não faz mais bolos, não anda de ônibus, não faz feira sozinha. A maior parte do dia é dentro de casa, em silêncio, com a mãe, a irmã e a filha. Alexsandra sequer dorme. As lembranças dos entes queridos e o barulho da lonas que cobrem o morro batendo ao vento a mantêm acordada a noite toda. “No outro dia eu digo para minha mãe: ‘passei a noite todinho para meu filho me levar. Ela diz: ‘minha filha, não diga isso, não’.”
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Uma caixa com as roupas do filho, um macacãozinho azul e os brinquedos do bebê são a materialização da saudade. Quando a falta aperta, ela agarra o pacote. “Fico com ele abraçadinho. Não consigo tirar ainda”. Quando fala de Érick, lembra da idade que ele completaria se estivesse vivo. “Meu netinho fez onze meses”.
É pela filha, Sthefane Maria dos Santos, 23, que Alexsandra tira forças para viver. Sabe que precisa estar aqui para a mais nova. Mas a situação também cobra resiliência de Sthefane, que perdeu irmão e sobrinho. “É muito difícil. Eu tenho que tentar não mostrar a ela o que eu estou sentindo, porque eu sei que se eu fraquejar ela não vai ter força para continuar”, comenta a jovem, que é técnica de enfermagem.
O sentimento em relação à demora por respostas é o mesmo em toda família: angústia. “A gente sentiu esse afastamento do Governo (de Pernambuco). A Compesa dificultando ainda mais. A gente fica muito perdida”, completa Sthefane.
Responsável pela tubulação que quebrou, a Compesa elabora um laudo para identificar a causa do rompimento. O documento é uma peça chave para que o grupo consiga seus direitos, pois é com ele que vai judicializar a questão. Em fevereiro, a companhia divulgou uma versão preliminar do texto que apontava que o motivo da fissura foram “ligações clandestinas ao longo da tubulação rompida e a presença significativa de água no solo”.
O discurso é contestada pelos sobreviventes. O motorista de aplicativo Erivaldo Barbosa, 41, tio de Emanuel, destaca que no momento que a encosta caiu, a única água que circulava era a do cano mestre da empresa. Ele diz que seria impossível fazer conexões em uma tubulação de 100 milímetros. “A profundidade do cano dentro da terra era de certo 2, 3 metros de profundidade. Tanto é que a barreira está aberta e não se vê vazamento nenhum, não corre esgoto”, cita.
Cunhado de Alexsandra, Erivaldo assumiu a frente para ajudar a família, tão abalada pelo caso, nas pendências e burocracias. “Não está sendo fácil. A gente vê o tempo passar e não vê a Compesa assumir a falha na tubulação. A gente sabe que essa falha ocorreu, todo mundo sabe. E fica esperando o governo se manifestar e fazer algumas coisas pela gente. Porque eu estou aqui todo dia e acompanho o sofrimento de todo mundo que ficou”, afirma.
À reportagem do JC, a Compesa respondeu que está atuando com equipes próprias e com consultorias especializadas na apuração. “Já foram cumpridas as etapas da elaboração do relatório técnico preliminar, levantamento topográfico, sondagens e coletas de amostras do solo, além dos ensaios de campo. Estão em curso o desenvolvimento dos ensaios laboratoriais nas amostras retiradas em campo, simulações computadorizadas, interpretação e diagnóstico sobre as condições de campo antes do acidente”, diz, em nota.
Só depois dessa fase os consultores vão “dar o diagnóstico de forma a caracterizar o fenômeno ocorrido, e identificar os principais fatores que podem ter interferido na causa do acidente”.
Paralelo à investigações da Compesa, o Estado vinha negociando com o grupo, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ), recebimento de auxílio moradia e de indenizações pelas perdas. No final de fevereiro, foi liberada uma ajuda de custo de dois salários mínimos pela duração de três meses. Desde maio, eles estão desacobertados.
“A gente sabe o direito que tem. A gente sabe que não pode ficar da forma que está, todo mundo esquecido. Só deram essa ajuda de custo de 3 meses para o pessoal que perdeu tanta coisa”, reforça Erivaldo.
Desalojado desde o incidente, quando teve o imóvel avariado, Otoniel Simião da Silva, 56, está pagando aluguel do próprio bolso. “Me deram três meses de dois salários. Só deu para pagar o que estava devendo”, fala. O homem, que trabalha descarregando alimentos dos caminhões na Ceasa, encontrou uma casa para alugar próximo à Rua Bela Vista - onde morava desde que nasceu. “Sou um fundador do Córrego do Morcego”, revela.
Não é a primeira vez que Otoniel vê a lama desaba sobre seu lar. Nos anos 2000, a mesma barreira despencou sobre os dois imóveis, em um dia de chuva. Na ocasião, não houve vítimas. A gestão municipal da época construiu e entregou novas casas aos moradores, mas não fez obra de contenção em toda encosta. Em dezembro, ele perdeu a esposa, Lucimar Alves, 50, a neta, Daffyne Kauane Alves, 9, e as amigas Claudia Bezerra, 47, e Lia de Oliveira, 45.
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A Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude diz que está em trâmite o levantamento para a prorrogação de mais três meses de ajuda de custo. A concessão, no entanto, só será destinada a seis dos sobreviventes, porque os outros cinco estão recebendo o auxílio emergencial do Governo Federal. “A lei federal que institui o auxílio emergencial proíbe que seja cumulativo com outro benefício assistencial. Por isso, na análise técnica, o Estado não pode propor o benefício de forma cumulativa”, explica, em nota.
Já sobre as indenizações, a pasta informa que está estruturando, junto com os proprietários das casas destruídas, as documentações de Registro Geral de Imóveis (RGI) - necessárias para a autorização da verba indenizatória. “No entanto, ambos não têm as comprovações de posse. Em decorrência disto, haverá uma nova rodada de negociação para definir o valor da indenização em relação a benfeitoria.”
A última reunião presencial com as partes foi em julho, ocasião em que foram estabelecidos os valores da indenização. A secretaria se comprometeu a agendar um novo encontro com o grupo “para atualizar os sobreviventes sobre o processo de ampliação do período de pagamento do benefício eventual e as tramitações para a indenização”.
O deslizamento também está sendo investigado pela Polícia Civil. Um laudo feito pelo Instituto de Criminalística já foi entregue desde março à Delegacia do Alto do Pascoal, à frente do caso. A PCPE limitou-se a dizer que o inquérito está em andamento e que se pronunciará ao final.
Após sete meses da tragédia, a barreira da Rua Bela Vista começou a receber obras de contenção. Os serviços da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), que incluem instalação de drenagem, tela argamassada, muro de arrimo e corrimão, começaram a ser executado no dia 27 de julho, com investimento de R$ 1,3 milhão e previsão de conclusão para dezembro. Próximo ao local, na 3ª Travessa da Rua Bela Vista, outra encosta também recebe a proteção, com recurso de R$ 1,2 milhão. Segundo o município, serão beneficiadas mais de 50 famílias residentes.
As casas dos sobreviventes do deslizamento não são diretamente adjacentes às encostas onde há obras. Ainda assim, eles ficam aliviados pelos vizinhos. "Precisou acontecer uma tragédia para pesarem que lá em cima também mora gente", pontua Erivaldo Barbosa. "Eu estou aliviada porque não vai acontecer com eles", complementa Alexsandra de França.
Lá em cima, o sentimento é similar: “Essa barreira era para ter feito antes, muito antes. Vieram fazer agora, depois que sete pessoas perderam a vida", opina a dona de casa Viviane Apolinaro da Silva, 32, que mora há cerca de dois anos em Dois Unidos. Sua filha estudava na mesma escola que Daffyne Kauane Alves, de 9 anos, uma das vítimas fatais do deslizamento. “É uma história muito triste. perder uma amiguinha da escola, eram muito juntas as duas”, revela. “Caiu assim de repente, foi um choque grande para todo mundo. Não teve festa de Natal, de Ano novo. As pessoas se conheciam.”
Bem próximo à área que deslizou, uma casa se ergue no meio da barreira. Quem mora lá é Maria Eduarda Saldanha da Silva, 19, com o marido. O casal se mudou para o local há cerca de dois meses, e vivem de aluguel. O valor é de R$ 120 mensais. “Foi o único canto que eu consegui mais em conta, e a gente veio para cá. Por isso a gente pegou aqui, mas eu já vim na insegurança”, diz.
A construção em andamento dá alguma tranquilidade, mas não o suficiente para cessar o medo. “Principalmente quando chove. Esses dias choveu, chega fiquei nervosa, porque a casa fica no pé da barreira”.