De longe já se nota uma grande quantidade de embarcações espremidas em uma pequena faixa de areia. Ao se aproximar da Praia de Guadalupe, em Sirinhaém, distante 76 quilômetros do Recife, no Litoral Sul de Pernambuco, se percebe o motivo dela ser tão concorrida. O que atrai diariamente, mesmo em período de pandemia, inúmeros catamarãs e lanchas abarrotados de turistas do Brasil e até do exterior é um banho de argila que teria propriedades medicinais. A maioria das embarcações parte da Praia dos Carneiros, em Tamandaré, e deixa os visitantes no local, banhado pelo Rio Formoso, para experimentar e até comprar o produto que é comercializado em várias barracas na área. No entanto, segundo alguns especialistas e estudos técnicos, a beleza pode esconder um perigo. A praia fica ao lado de falésias de cerca de 15 metros de altura. Estrutura que pode desabar a qualquer momento, já que a argila comercializada é retirada justamente das falésias.
>> Parte de falésia desaba na praia de Pipa e deixa mortos
O alerta veio à tona após o desabamento de uma falésia na Praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, no dia 17 de novembro. Na ocasião, três pessoas morreram: casal e o filho deles, de apenas 7 meses.
Além da retirada da argila por parte dos comerciantes, a grande circulação de pessoas no local e a própria ação do tempo podem potencializar um possível deslizamento. O engenheiro civil e professor especialista em geotecnia Alexandre Gusmão é um dos que fazem este alerta. "O processo é o mesmo, a dimensão é que é diferente. Em Pipa, as falésias são bem mais altas e sofrem a ação do mar, enquanto aqui são menores e atingidas pelo rio. Mas basta um metro cúbico de uma rocha pra matar uma pessoa, caindo dessa altura. E aqui (em Guadalupe) tem o agravante de que a exploração da argila pode acelerar este processo. As pessoas que vão lá em Guadalupe estão correndo algum risco", garantiu Alexandre.
De acordo com o especialista, a erosão do local vem sendo acelerada ao longo dos anos por fatores naturais e humanos. "Existe o desgaste natural, quando o nível do rio sobe e atua no pé da encosta, e também a ação humana, na ocupação e retirada do material. Tudo isso contribui pra aumentar o desgaste do local. Na hora em que o pé da encosta se desestabiliza, o que está em cima pode descer e atingir os turistas e comerciantes", alerta.
Um estudo técnico feito por uma empresa de consultoria ambiental, no dia 23 de novembro deste ano, com o auxílio de um drone, indentificou blocos de rocha alterada com riscos de queda e outros já desprendidos na base da encosta. O relatório concluiu, entre outras coisas, que "fica latente a possibilidade de quedas ou tombamentos de rocha e/ou escorregamentos de massas de solo". O estudo recomenda que sejam colocadas placas de sinalização alertando sobre o risco e um projeto de suavização da escarpa com um sistema de drenagem e consolidação da base da falésia.
Alexandre Gusmão diz que o primeiro passo é estabilizar as falésias. "É preciso uma obra de engenharia que estabilize a falésia, que impeça que esse mecanismo natural aconteça. Existem soluções pra isso. É necessário também que você dê um ordenamento para aquela atividade. A exploração pode ser feita, mas não como hoje, e sim de maneira organizada e racional para que as pessoas tenham acesso às belezas", finaliza o especialista.
DESCONHECIDOBoa parte das pessoas que vão a Guadalupe não fazem ideia do risco que podem correr. Em tempos de novo coronavírus, o vai e vem incessante das embarcações repleta de turistas chama a atenção. O industrial Nédio Bancher levou toda sua família de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, para o local. "Nós saímos da terra do vinho para experimentar a argila daqui do Nordeste. Vamos sair daqui mais jovens para poder voltar mais vezes", brincou, sem ter noção do risco. Natural de Rondônia, a médica veterinária Luana Custódio estava acompanhada da prima. "Nós estamos viajando de férias e nos indicaram bastante esse banho (de argila), dizendo que rejuvesnece, que acaba com estrias e melhora a pele, entre outras coisas. Então viemos testar", disse.
Os comerciantes locais fazem a retirada, tratamento e venda do material em várias barracas na estreita faixa de areia do local. "Nós extraímos a argila daqui mesmo da praia, a uns 40 centrímetros abaixo da areia, cavando com as mãos ou enxadas. Depois fazemos um processo de lavagem para remover toda a areia e na sequência colocamos em baldes para facilitar a aplicação nos turistas. Para vender, nós a colocamos no sol, depois no forno e peneiramos para fazer o sabonete de argila e também ela em pó por cerca de R$ 20", explicou a vendedora Alda Lúcia da Silva. Muitos turistas compram o produto, como a universitária Luanna Tavares. "Eu gostei tanto que resolvi levar, vou usar em casa e ainda dar de presente", contou.
Um dos turistas que estavam na Praia de Guadalupe no dia da reportagem e tem noção do risco que uma falésia representa era o engenheiro Jefferson Arruda, do Rio Grande do Norte. Ele disse que já havia ido várias vezes em Pipa, onde houve o acidente fatal, e não imaginava que estava correndo um risco semelhante em Sirinhaém. "Aquela tragédia gerou um alerta pra todas as praias do Nordeste. Eu mesmo não sabia que esta daqui também era uma área de risco. Acho que todos deveriam ser alertados e a área receber um pouco mais de atenção da população e das autoridades", finaliza.
RESPOSTAEm nota, a prefeitura de Sirinhaém informa que, "considerando a tragédia que ocorreu recentemente na Praia do Pipa/RN, a Prefeitura de Sirinhaém, através da secretaria de meio ambiente e turismo, vem elaborando ação integrada com a Secretaria de meio ambiente do Estado/SEMAS, Defesa Civil Municipal e CPRH, através da APA de Guadalupe, para vistoria e fiscalização na área do Banho de Argila, localizada na Praia de Guadalupe. Também estamos com uma parceria para a instalação de placas de sinalização para sensibilização dos usuários locais, dos pequenos comerciantes e visitantes daquele destino turístico".