Situado em um importante corredor de veículos que liga o Recife à cidade de Olinda, um equipamento completo, que conta com toda estrutura necessária para abrigar pelo menos 82 comércios, amarga a solidão. Do lado de dentro do Mercado de Santo Amaro, os poucos vendedores que restaram – 13, durante a visita da reportagem – assistem ao balé de pedestres e veículos que acontece dia e noite nas calçada e na Avenida Cruz Cabugá, na área central do Recife, uma área historicamente voltada para o comércio, esperando ansiosos pela chegada de algum cliente. Mas poucos chegam.
O apagado letreiro da fachada já dá o tom de esquecimento do mercado. No rádio de um dos boxes, um forró tenta animar o silencioso ambiente – sem sucesso. As frestas no teto de madeira deixam a água da chuva passar, que formam poças no chão. É preciso se esquivar dos cachorros e gatos de rua que passam pelas pernas. O estado da imensa maioria dos compartimentos demonstra que estão vazios há tempos. Apesar dos produtos terem preços, em geral, inferiores ao de outras lojas, as cadeiras de plástico dispostas pelos corredores continuam sem ninguém.
LEIA MAIS:
- Os gargalos - no trânsito e de manutenção - concentrados na Avenida Cruz Cabugá, no Centro do Recife
- As vidas, comércio e habitação cultivados em volta da Avenida Caxangá, coração da Zona Oeste do Recife
- Avenida Caxangá, no Recife: de uma ponta a outra, "a maior em linha reta" de problemas
- A fiação exposta e emaranhada ofusca a beleza do Recife, e não há previsão para isso mudar
- Desapropriação de casas e falta de diálogo: o lado B da construção da Ponte Monteiro-Iputinga no Recife
- A resistência do comércio e o movimento de retorno da arte e da moradia ao Centro do Recife
Inaugurado em junho de 1933 pelo prefeito Antônio de Goes Cavalcante, o mercado recebeu a última grande reforma há 23 anos, em 1998, segundo informações da Prefeitura do Recife. O equipamento de 692m² ocupa a região que um dia foi propriedade do senhor Caetano Lopes e, ao redor dele, hoje, há importantes edifícios e repartições públicas, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco (DER-PE), o Hospital Naval de Recife (HNR), entre outros. A poucas ruas, há toda a população residente na Rua da Aurora. Mesmo assim, a clientela é fraca.
Após serem noticiadas as ações de ordenamento nos mercados de São José, em 2019, no de Água Fria, neste ano, e a requalificação do Mercado da Boa Vista, entregue também em 2021, José Ronaldo de Souza, 57 anos, apostou que o mesmo aconteceria no de Santo Amaro, e comprou um box nele por R$ 10 mil. Todavia, até agora, quatro meses depois, não viu retorno e muito menos esperança de melhora da estrutura, e já considera repassar o ponto.
Todos os dias, vem de Paulista, no Grande Recife, para vender em média R$ 100 no local. “Tem insetos, baratas, escorpiões e gabirus à noite. O pessoal às vezes invade aqui, mendigos dormem dentro. Não temos segurança, vigilante, nem estacionamento. Tem um público potencial na área, mas que não é atraído porque aqui é sujo, imundo e obscuro. Não tem ambiente que possa acolher essas pessoas. Todo dia é uma guerra para vender algo”, disse.
Há 12 anos, José Gonçalves, de 74 anos, conhecido como “Zé Tripa”, vende miolo, fígado e carne de porco no mercado, e sente falta do movimento que tinha quando montou o negócio no local. “Aqui não tem administração, está abandonado. Quando cheguei era bom, movimentado, agora não tem mais ninguém. Os boxes estão todos desocupados. É muito difícil alguém vir aqui. Se entram 10 pessoas aqui durante o dia é muito”, relatou.
Desde que veio do Rio de Janeiro para o Recife, ainda criança, o técnico em radiologia Marcos Lira frequenta o mercado. Ele era um dos poucos clientes que estava no local quando o JC o visitou, e contou que tenta priorizar fazer as compras nele para não “deixá-lo morrer”. “Quem ficou, é um herói. O pessoal está sobrevivendo. Sempre dou preferência comprar aqui para o mercado não morrer. Antes era tudo aberto. Eu sempre vinha, cortava o cabelo, jogava um dominó, almoçava. Agora está quase tudo fechado. Precisa de investimento e atenção, e principalmente estacionamento”, pediu.
Ao ser perguntado sobre quais eram as condições de trabalho no local, Eduardo José, 58, que faz manutenção de eletrodomésticos, disse precisar atrair clientes fora do equipamento, e que não vê ações da gestão municipal para melhorá-lo. “Não tem divulgação, a gente não recebe uma qualificação para servir os fregueses. A prefeitura não dá incentivo a gente para nada. Aqui tem uma pessoa que varre durante o dia, mas só isso. Eu pago R$ 152 no aluguel, fora energia. A água é inclusa no condomínio. Mas a gente aqui não ganha dinheiro”, revelou.
Esclarecimento
Reservando-se a responder por nota, a Prefeitura do Recife, por meio da Autarquia de Serviços Urbanos do Recife (Csurb), esclareceu que "devido à baixa demanda do Mercado de Santo Amaro, pela falta de frequentadores, principalmente durante o período pandêmico, vários permissionários optaram pelo fechamento dos seus boxes". E que, dessa forma, o equipamento "está sendo alvo de estudo da Autarquia de Serviços Urbanos do Recife para a melhor utilização do espaço", sem dar mais detalhes sobre tal estudo, ainda que a reportagem tenha solicitado - sem sucesso - entrevista com integrantes da equipe.
Como estão os outros mercados do Recife?
Apesar do Mercado de Santo Amaro ser um dos mais subutilizados, não é o único com problemas no Recife. A reportagem também foi até o Mercado de Água Fria, inaugurado em 1954 no bairro de mesmo nome, na Zona Norte da cidade, e constatou que alguns dos 162 boxes também estão em desuso, além da fachada estar coberta por pichações. Por dentro, estava limpo no dia da visita, mas comerciantes da área apontaram que nem sempre é assim.
Essa é a principal crítica de Sandoval Gomes, 63, proprietário do Bar do Gomes. "Aqui é cheio de gatos, que fazem cocô pelos corredores e prejudicam minhas vendas. Falamos com a prefeitura, mas ninguém resolve nada. Hoje está limpo, mas tem dia que está imundo, com lixo, xixi, tudo", contou ele, que também reclama da falta de manutenção e da queda da clientela. "Está faltando uma reforma aqui. O movimento caiu há uns 2 meses."
O também comerciante Fábio Magalhães, 44, contou que precisa usar a criatividade para chamar a população a utilizar o espaço, por meio de lojas online na internet. "Muita gente deve ter fechado a loja pelo fluxo de pessoas não estar tão bom, mas isso vai muito também de quem está administrando. Precisa chamar os clientes, que você consegue ter resultado", afirmou.
Ainda neste ano, a Prefeitura do Recife fez ação de ordenamento na área do entorno do Mercado, com o objetivo de melhorar a mobilidade de pedestres e veículos no local. No Mercado da Madalena, entregue em 1925 na Zona Oeste da cidade, a reportagem encontrou equipes da prefeitura fazendo reparos no equipamento, que desde 2018 teve requalificação prometida pela gestão de Geraldo Julio (PSB).
Segundo o poder municipal, o projeto de recuperação da coberta do mercado orçado em R$ 905.648,89 aguarda retorno sobre repasse feito pela Caixa Econômica Federal para início da licitação, e, enquanto isso, é feita "intervenção estruturadora de recuperação dos pilares e dos alpendres, consequentemente retirando as escoras que reforçam a sustentação, trocando as telhas canal por telhas metálicas, diminuindo a carga que incidia sobre a estrutura supracitada".
Em um dos 180 compartimentos, o comerciante Samuel Batista, 54, que há 32 anos trabalha no mercado, comemorava os reparos. "Começaram no meio da pandemia, depois foram suspensos e agora espero que terminem. Estava precisando, estávamos esperando chegar há muito tempo, e esperamos que atenda a nós, comerciantes, e ao público", disse.
Cliente fiel do equipamento, o aposentado Roberto Brandão, 62, que mora na Madalena, comentou que serviços feitos no saneamento do mercado nos últimos tempos já trazem benefícios. "Quando chovia, enchia. Agora eles fizeram o serviço, colocaram telas [para barrar o lixo de entrar nas galerias] e ficou legal. Isso aqui antes era tudo sujo, sem escoamento de água. Agora não tem tido mais isso. Tem muita coisa a se fazer ainda, mas já foi feito um bocado de coisa", afirmou.
Mais que áreas comerciais, os mercados públicos são características indispensáveis quando se fala do Recife: fazem parte da memória afetiva da cidade, juntando cultura, gastronomia, sendo ainda um dos poucos pontos de encontro de pessoas de diferentes classes sociais e parada indispensável para os turistas. Nos últimos anos, alguns desses equipamentos foram alvos de ações da Prefeitura do Recife. Em 2018, novos banheiros foram entregues no Mercado da Encruzilhada. Em 2019, foi feita a revitalização no entorno do Mercado de São José. Neste ano, houve ordenamento no entorno do de Água Fria.
A revitalização mais recente e marcante, no entanto, aconteceu no Mercado da Boa Vista, no Centro da cidade, que possui 63 boxes e nove bares. Referência pela comida regional e também ponto de encontro carnavalesco, recebeu de mais de R$ 3 milhões em investimento, distribuídos na pintura, novo sistema de drenagem, recuperação da cobertura, nivelamento do piso, troca das luminárias, embutimento de cabos de telefonia, novo revestimento nas parede, bicicletário, entre outros serviços.