DIREITOS HUMANOS

A dor do imigrante africano que descobre o que é o racismo no Brasil

Caso Moïse Kabagambe, congolês morto a pauladas no Rio de Janeiro, jogou luz sobre a difícil conjuntura de vivência de imigrantes africanos no Brasil. Conheça a história de dois deles, moradores do Recife

Cadastrado por

Katarina Moraes

Publicado em 28/02/2022 às 10:24 | Atualizado em 26/06/2022 às 21:53
O angolano Fernando Sabonete está no Brasil há 21 anos. Mesmo com duas pós-graduações, não consegue emprego - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Esta reportagem está vinculada a "Pernambuco tem mais de 9 mil imigrantes, mas falhas nas políticas de integração tornam o recomeço quase impossível". Leia também.

Com as mãos nos ferros da janela do apartamento onde mora, no bairro da Boa Vista, Centro do Recife, o angolano Fernando Sabonete, de 61 anos, desabafou, com um sorriso triste: “aqui todo negro está em uma prisão. Seja bandido ou não.” Ele decidiu migrar para o Brasil para alçar novos voos, acreditando que, por ser um país também colonizado, onde seus antepassados foram escravizados, com a mesma língua e com 54% da população negra, seria bem recebido. Engano seu, que caiu no mito do “brasileiro cordial”. Aqui, o racismo o tem acompanhado em todos os seus passos desde que chegou, há 21 anos - e, por vezes, impedindo-o de avançar.

"Morei em outros lugares, na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos, mas o racismo nunca me afetou tanto quanto tem me afetado no Brasil. Nunca pensei que encontraria isso aqui, achei que seria diferente. Aqui percebemos o racismo rapidamente - a não ser que você não queira perceber”, explicou, reafirmando o que diz o Atlas da Violência 2021: que a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. “Não assistimos mais aos programas policiais. A irmã da minha sogra esteve aqui e, quando a gente ligava no jornal, ela perguntava se tinha outro canal. Ela dizia: ‘vivi uma guerra civil em que não se matavam tantos negros assim’.”

Enquanto isso, no Brasil, a quantidade de imigrantes vem crescendo exponencialmente. Em 2001, eram apenas 5.849 estrangeiros no país, segundo dados da PF. Dez anos depois, em 2011, havia crescido para 27.339. Em 2021, atingiu seu ápice, 165.256 tinham o solo canarinho como lar. No ano passado, a maioria dos estrangeiros era da Venezuela (101.873), Haiti (16.889) e da Colômbia (5.581), respectivamente. Além dos haitianos, país com maioria da população negra, também recebemos em larga escala negros de Angola (2.743), 6º origem mais comum entre os imigrantes no Brasil.

Em reportagem, este JC mostrou quão precária ainda é a assistência a estrangeiros em Pernambuco. Não há planos ou políticas robustas e vigentes nos municípios que viabilizem a integração dessas pessoas na vida social e no mercado de trabalho, tampouco assistência emergencial suficiente para dar conta do contingente, que está, em sua maioria, distribuído pelas cidades do Recife (4.251), Jaboatão dos Guararapes (1.180), Ipojuca (588), Olinda (488), Caruaru (444). Quando existem, está restrita a venezuelanos.

A pesquisadora sobre migração e cientista social Ana Carolina Gonçalves Leite, uma das fundadoras do Núcleo Migra, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), enfatiza a necessidade de entender a vinda de estrangeiros negros como um fenômeno diferente da dos brancos. “Essa é uma outra chave de entendimento que a xenofobia não alcança, porque o racismo está presente em toda a organização da sociedade brasileira. A desigualdade racial repercute neles nas dificuldades de acesso a equipamentos públicos, colocando os africanos em padrões subalternos de trabalho.”

A família de Fernando é exemplo disso. É difícil incentivar as três filhas do angolano a estudarem quando elas veem o pai, graduado em teologia e letras, pós-graduado em psicopedagogia, com um mestrado em antropologia e a caminho da conclusão de um doutorado na mesma área não conseguir sequer um subemprego, que não demanda uma formação acadêmica. Em 20 anos no Brasil, esteve com a carteira assinada durante dois: como vendedor de uma livraria. “Não quero trabalhar só na minha formação, faria qualquer coisa. Já pedi até emprego de serviços gerais, mas não consegui; e não só eu, como outros estrangeiros aqui”, contou ele, citando a preocupação com o atraso da taxa de condomínio e com o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).

Fernando vive no Brasil com a esposa, Madalena Cassinda, e suas três filhas - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

A conjuntura que engloba os imigrantes negros veio à tona após o congolês Moïse Kabagambe, 24, ser agredido até a morte ao cobrar o pagamento atrasado por dois dias que trabalhou em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. As imagens, gravadas por câmeras de segurança do estabelecimento, mostravam que o refugiado não oferecia qualquer resistência enquanto apanhava. O caso ganhou repercussão nacional, suscitando ato pedindo justiça por Moïse até mesmo na capital pernambucana em 5 de fevereiro, organizado por ativistas, integrantes da Associação de Imigrantes Senegaleses de Pernambuco e de movimentos sociais.

Ao saber o que aconteceu com Moïse, o também congolês Dozo Malemba, 25, foi alertado para “ter cuidado” por um amigo - mas, indignado, perguntou a ele como seria capaz de prevenir algo do tipo. “Ele morreu por um mal entendido. Isso pode acontecer com qualquer um de nós. A gente fica com aquele medo de não saber se você pode se abrir para alguém, porque por um pequeno desvio pode perder sua vida”, disse o estudante de engenharia civil da UFPE que está no Brasil há 5 anos. Sentado no sofá do apartamento que divide com outros universitários, Dozo afirmou, em seu brando tom de voz, ter descoberto que era “preto” ao chegar no Brasil, porque, antes disso, sua raça nunca havia sido uma questão que diretamente o impedia de viver plenamente.

Também congolês, Dozo Malemba se viu no conterrâneo Moïse Kabagambe - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

“Achei que o Brasil fosse um lugar com menos preconceito, mas quando vim me deparei com outra realidade. Em outros países em que já tive a oportunidade de visitar, eu nunca tive essa sensação de ser tratado diferentemente”. Precisar provar “não ser do mal” a todo tempo, o que não acontece com outros amigos que são estrangeiros e brancos, o cansa. “Percebo que a pessoa segura a bolsa [contra o corpo] quando eu passo na rua ou muda de lado. Vou a um lugar, sento, e a pessoa se afasta um pouco. Na faculdade era bastante difícil achar um grupo de estudo. Tenho amigos brancos de fora do mesmo programa que eu que se integraram muito mais facilmente na vida acadêmica do que os que vieram da África.”

LENTA ADAPTAÇÃO O africano Dozo Malemba sentiu dificuldade em se integrar a outros estudantes na Universidade Federal de Pernambuco - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Isso acontece porque, segundo a pesquisadora Sofia Cavalcanti Zanforlin, também do Migra, desde o governo Juscelino Kubitschek o Brasil tem um ideal de imigrante que não engloba os povos africanos. “A migração africana é invisibilizada. No Rio de Janeiro, existem fluxos periódicos a partir da guerra civil da Angola. Os pedidos de refúgio continuam acontecendo por causa dos congoleses, que vivem em guerra civil, e é claro perceber a divisão de enquadramento a partir de grupos. O enquadramento midiático que se dá ao imigrante branco e ao negro é diferente. O negro só aparece em papéis pejorativos."

Por esses motivos, o Brasil deixou de ser um sonho latino-americano para Fernando e Dozo. Os imigrantes, que se dizem gratos pelos anos que viveram na América do Sul, desejam retornar aos países de origem assim que acabarem os estudos e alcançar uma outra forma de liberdade: a que a violência não escolhe seu alvo pela cor da pele.

"Angola é uma casa com os móveis desorganizados", disse Fernando, que sonha em retornar ao país de origem e ajudar a "organizá-lo" - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

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