Faz dois meses que Anderson Enoque, de 35 anos, dorme no chão de uma garagem aberta e sem portas na comunidade Lagoa Encantada, no bairro da Cohab, Zona Sul do Recife. O sono é interrompido constantemente pela entrada de ratos e gatos. Sem gás, cozinha em um fogão a lenha, no meio da calçada. Não tem banheiro, então usa o dos vizinhos. Lá, vive com outros três homens que também tiveram as próprias casas interditadas pelo deslizamento de barreira nas chuvas de 28 de maio de 2022.
O espaço, que já é precário para moradia, precisará ser desocupado até sábado, prazo determinado pelo proprietário do imóvel que o cedeu. “Não sei para onde vou” - contou ele. A parcela de R$ 300 do auxílio moradia que recebeu da Prefeitura do Recife foi usada para comprar alimentação, já que as doações, que antes chegavam em abundância, cessaram.
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Ele ainda aguarda o depósito do Auxílio Municipal Emergencial (AME), de R$ 2,5 mil. Por isso, junto a outros moradores da Rua Jovem João Santos Neto, realizou três protestos para cobrar pelos pagamentos. Segundo eles, das 25 famílias que tiveram as casas interditadas pela Defesa Civil - entre elas, nove atingidas pela barreira - só cinco receberam o auxílio moradia. Dessas, quatro receberam o AME.
“Acha que a gente iria se expor, gastar dinheiro para comprar material para protestar e correr risco na rua se não precisássemos?”, indagou a vendedora Manuela da Conceição, 36. Desde aquele dia, o lar onde ela morava com o marido virou um “campo minado”, com perigo por todos os lados. “Não pise aí, que está com risco de ceder por causa da água que encharcou o solo”, avisou ela à equipe do JC.
Hoje, vive de favor na casa de familiares, com móveis e eletrodomésticos espalhados pela vizinhança. “A gente perde a privacidade, além de ser uma humilhação. Minhas coisas não estão mais dentro de casa porque podem ser saqueadas, então tivemos que tirar. Estão se acabando, mofando e quebrando, então praticamente não tenho mais nada”, desabafou.
Apesar de reclamar da demora nos pagamentos, a comunidade sabe que os valores não vão resolver a situação e deixa claro: quer a execução de obras que tornem o local seguro para retornar às casas. Isso porque não houve deslizamentos no lado da rua onde há alguns muros de arrimo construídos há cerca de 10 anos pela gestão municipal, segundo moradores.
Em 2019, a Câmara Municipal do Recife encaminhou à Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb) um requerimento pela realização de serviços de contenção de encosta e construção de muro de arrimo com drenagem na mesma rua. O pleito foi feito pelo vereador Wilton Brito (PSB) a pedido da comunidade - mas não foi atendido.
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Três anos depois, a barreira deslizou na rua na manhã do dia 28 de maio e matou a cunhada e os sobrinhos de Anderson. Elizângela da Silva Rocha, de 35 anos, estava junto aos filhos Emily Marques Rocha de Lima, 4, e Kaique Marques Rocha de Lima, 7, e o marido na mesma cama, quando o barro desceu, levando a casa. Somente o homem se salvou.
O outro filho da vítima, Eduardo Silva de Oliveira, 17, dormiu na casa da sogra no dia, em São Lourenço da Mata. Por isso, escapou da tragédia. “Eu recebi a notícia por telefone”, disse ele à reportagem.
Menor de idade, agora vive sob os cuidados de um tio, e não teve acompanhamento psicológico apesar da perda. O Governo de Pernambuco garantiu que os dependentes das vítimas fatais receberiam uma pensão vitalícia no valor de um salário mínimo; mas nem Eduardo, nem nenhum outro, teve o valor depositado até agora.
"É um cenário que não desejo para ninguém, que nunca vai ser esquecido. Toda data 28 a gente vai sentir essa dor, toda vez", lamentou Manuela, vestindo uma camiseta com a foto da amiga Elizângela com os dois filhos e os dizeres "saudades eterna".
Falta de assistência se estende pela RMR
Em Olinda, o drama se repete. A Travessa Santos, no Córrego do Abacaxi, ficou marcada como o local onde as primeiras mortes por deslizamento de barreira do inverno de 2022 foram registradas no Grande Recife. No dia 25 de maio, o casal Rosimery Silva de Oliveira, 47, e Sérgio Pimentel dos Santos, 53, foi sufocado pela terra que há décadas ameaçava a comunidade e que nem mesmo havia sido coberta por lonas de plástico.
“Foi triste para a nossa família. O governo disse que iria nos ressarcir, mas até agora não recebemos ajuda de ninguém”, afirmou o irmão de Rosimery, Ezequiel Justo da Silva, 53, que teve o quintal atingido e a casa interditada dias após a tragédia. Mesmo assim, permanece morando no endereço, por estar desempregado e não ter ganhado o auxílio para deixar o local.
“Vou para onde sem um auxílio para pagar? Mesmo que eu morra, tenho que ficar dentro dela”, disse. “Fico com medo. Meus olhos são inchados porque não durmo. Cada vez que chove, penso na barreira vindo de novo. Que se resolva logo o auxílio, porque pelo menos é uma ajuda. Só vão mandar quando morrer outro? Quando outra tragédia acontecer?", questionou.
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Entrevistada pelo JC em maio, a confeiteira autônoma Mirtes Carla de Oliveira, 34, mostrou que parte da cozinha onde trabalhava tinha sido destruída pela barreira. A partir do dia 28, não sobrou mais nada. A casa que ela, junto ao marido, levou anos para comprar e reformar agora é sinônimo de perigo, com uma cratera na parede de trás, que faz o barro jorrar para dentro ao menor sinal de chuva.
“Estamos pagando R$ 500 de aluguel, que não era um dinheiro que estávamos contando agora. Não tivemos auxílio ainda, estamos pagando esses dois meses do nosso dinheiro. Voltei a trabalhar há pouco tempo porque chegaram algumas doações, mas é muito difícil”, contou ela, e completou: "meu filho não quer voltar porque ficou muito assustado, está fazendo até tratamento psicológico".
A Prefeitura de Olinda esteve na casa e, segundo ela, disse que voltaria para retirar os destroços quando as chuvas passarem. “A gente fez um paliativo porque estava entrando na casa, não estávamos conseguindo fechar as portas, mas precisamos do auxílio da prefeitura, porque não temos condição de tirar tudo”, disse.
Pagamento de auxílio e ações emergenciais
O imbróglio no pagamento do "auxílio chuva" tem provocado indignação e protestos pela Região Metropolitana do Recife. Pela longa burocracia para atestar que o cidadão se inclui nos critérios, o dinheiro demora a chegar até as contas.
Inicialmente, a Defesa Civil de cada cidade precisa comprovar que o cidadão teve prejuízos, a partir de visitas presenciais. Depois, é conferido se ele é inscrito no CadÚnico, uma exigência para o recebimento. Se tiver, é feito o cadastramento no banco - que precisa confirmar que a conta pertence ao candidato ao auxílio e enviar a liberação para as prefeituras. Só então o depósito é feito.
No Recife, os munícipes que tiveram perdas devem receber R$ 2,5 mil, que representam os R$ 1,5 mil advindos do Estado, e outros R$ 1 mil do poder municipal. Em outras cidades, como Jaboatão dos Guararapes e Olinda, os benefícios não são acumulativos - sendo o municipal dado a quem ficou abrigado nos alojamentos da prefeitura, e o estadual a quem teve prejuízo pelos temporais e se enquadra nos critérios do Governo de Pernambuco.
Para casos de pessoas que perderam entes na tragédia - que deixou 132 vítimas, no total - ainda foi instituída uma pensão vitalícia de um salário mínimo por família pelo Governo de Pernambuco. O valor, que deverá ser dividido pelos filhos menores de idade e pelos cônjuges ou companheiros sobreviventes, será feito até o final da vida do último beneficiário do grupo familiar ou quando os dependentes atingirem a maioridade.
Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ) do Estado, foi encaminhado o pagamento a 47 beneficiários, “que devem ter acesso aos valores entre esta sexta-feira (29) e a próxima semana, de acordo com os prazos de compensação bancária”. A pasta afirmou que outros 24 cadastros estão em fase final de avaliação jurídica sobre o atendimento às exigências para receber o benefício.
A SDSCJ informou que todos os 30 municípios elencados na primeira etapa do Auxílio Pernambuco, no início de junho deste ano, já foram contemplados com recursos destinados para pagamento do benefício, o que chegou a uma soma de R$ 122.387.483,85.
Já entre os outros 33 municípios incluídos entre o fim de junho e início de julho, quatro já receberam recursos: Chã de Alegria, Itamaracá, Primavera e Quipapá. Os demais estão em processo de atendimento a requisitos para a transferência entre os Fundos de Assistência Social estadual e municipais.
O que dizem as prefeituras
Por nota, a Prefeitura de Olinda citou ações feitas pelas vítimas das chuvas, entre elas: distribuição de cestas básicas, cobertores, fraldas e produtos de limpeza; geladeiras, fogões, colchões e cartões de cestas básicas. Ainda, afirmou que mil famílias foram cadastradas no auxílio, em um processo que segue em execução, que 2 mil cadastros foram validados, mas que cerca de 200 famílias receberam os valores.
Olinda apontou, também, ter feito convênio com o Governo do Estado no valor de R$ 13 milhões para aplicação de geomanta em áreas de morro, dos quais R$ 1,5 milhão para execução ainda este ano, e de R$ 50 milhões para construção de muros de arrimo, dos quais R$ 8 milhões já estão em fase final de projeto para licitação. Além disso, afirmou ter instalado 467.979 m² de lonas em morros e encostas da cidade.
A Prefeitura do Recife informou, em nota, que já contemplou 17.681 mil famílias com o Auxílio Municipal e Estadual (AME), no valor de R$ 2.500,00, como forma de amenizar os impactos e as perdas decorrentes das chuvas, com benefício direto para 71,5 mil pessoas em um investimento de R$ 44,2 milhões.
A Prefeitura informou também que os munícipes "Anderson Enoque da Silva e Robson Ferreira da Silva tiveram seus benefícios de Auxílio Moradia (AM) autorizados através da Portaria n° 3 da Secretaria Executiva de Defesa Civil, que foi publicada no Diário Oficial do Município em 18 de junho. Seus processos para análise dos critérios de concessão do AME deverão acontecer ainda esta semana".
Já a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes informou que "das 380 famílias que passaram pelos abrigos, 363 já receberam o Auxílio Emergencial Municipal, de R$ 1.500".
"Já no que se refere ao Auxílio Emergencial Pernambuco, das cerca de 12 mil famílias que deverão recebê-lo (também no valor de R$ 1.500), 6.090 pagamentos foram validados pelo município, até o momento. Milhares ainda estão com pendência na inscrição do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Por isso, além do atendimento diário em sede, equipes do Balcão da Cidadania e do CadÚnico vêm participando de mutirões e ações itinerantes e indo diretamente aos territórios afetados pelas águas para resolver essas pendências", disse a gestão.
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