Os desafios urbanos que prefeitos do Grande Recife vão enfrentar na cidade metrópole

A partir deste domingo (13), o Jornal do Commercio inicia uma série de reportagens para discutir velhos e novos problemas que vão estar na agenda dos candidatos a prefeito. Apesar do discurso, pouco se avançou no enfrentamento conjunto dos problemas comuns da RMR
Ciara Carvalho
Publicado em 13/09/2020 às 8:07
Enfrentar o déficit habitacional, com a erradicação das palafitas, é um dos maiores desafios da cidade do Recife. Só com a governança metropolitana questões como essas e outras de interesse comum na RMR poderão ser superadas a longo e médio prazo Foto: LUISI MARQUES/JC IMAGEM


O encontro com as urnas está marcado para o dia 15 de novembro. É quando os eleitores vão decidir em que cidade querem morar. Pelo menos, ao longo dos próximos quatro anos. Velhos e novos problemas pautam a agenda dos candidatos a prefeito. O que eles têm a propor sobre os desafios urbanos? Muito já se falou sobre a importância do planejamento metropolitano para enfrentar os obstáculos comuns a todos os municípios do Grande Recife. Mas pouco, muito pouco tem sido feito. Lixo, mobilidade, habitação, desenvolvimento econômico, inclusão social. Está tudo interligado e espalhado num só tecido urbano. No discurso, todos são a favor de uma gestão compartilhada. No dia a dia, a história tem sido bem diferente. Já se perdeu tempo demais. E é preciso aprender com os erros. Há um passivo de décadas de discussões, que pouco avançaram no sentido de nortear, de forma realmente transformadora, as gestões e decisões municipais. A partir deste domingo (13), o Jornal do Commercio inicia uma série de reportagens que vai olhar para os desafios urbanos não como espaços territoriais isolados, mas na perspectiva da cidade metrópole. Uma conversa que projeta o futuro sustentável e mexe diretamente no cotidiano e na qualidade de vida de cada um dos eleitores.

São, em média, duas horas para ir. Duas horas e meia para voltar. O técnico em eletrotécnica Fábio Souza da Paz, 33 anos, atravessa a Região Metropolitana todos os dias da semana. Do Sul ao Oeste. Quatro cidades, um metrô, três ônibus. Não raro, quando o metrô quebra, o percurso fica ainda mais demorado. Aí são quatro ônibus, três horas na ida, mais três horas na volta. Fábio mora no Cabo de Santo Agostinho e trabalha em Camaragibe. A metrópole é, por extensão, a sua casa. Às 6h, ele sai do Cabo, desce em Jaboatão dos Guararapes, segue para o Recife, e, com sorte, chega em Camaragibe por volta das 8h. O cidadão metropolitano, em sua essência. Mais um entre os 4,1 milhões de moradores de um território conurbado, cujos limites municipais se diluem na rotina diária. É na mancha urbana dessa metrópole que os engarrafamentos, as palafitas, os esgotos a céu aberto, a poluição, a miséria extrema e a riqueza se concentram. O potencial de soluções também.

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Embora o discurso seja antigo e ainda de pouca efetividade, a governança metropolitana é caminho sem volta. Tudo passa pelo planejamento. Ou os novos gestores enfrentam esses desafios de forma compartilhada ou os problemas vão se acumular em escalas cada vez maiores. A oportunidade é histórica. Pela primeira vez, os prefeitos eleitos em novembro terão em mãos uma normativa específica para direcionar o crescimento e coordenar ações integradas. Uma espécie de plano diretor da metrópole.

O primeiro Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Recife (PDUI-RMR) está em fase final de elaboração. Deverá ser validado e aprovado no primeiro semestre do próximo ano. O plano trata de questões estratégicas, como desenvolvimento econômico, crescimento das cidades, adensamento urbano, mobilidade, saneamento, coleta de lixo e sustentabilidade ambiental. O PDUI estabelece as diretrizes para o crescimento do Grande Recife, com base nas funções públicas de interesse comum dos municípios. "Justamente aquelas que não se resolvem sozinhas, não estão restritas a um território único e dependem de uma solução negociada para a prestação de um serviço eficiente", pontua o arquiteto e urbanista Geraldo Marinho, coordenador da equipe do consórcio Ceplan/Gênesis, que foi contratado pela Agência Condepe/Fidem para elaboração do PDUI.

YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM - O técnico em eletrotécnica Fábio Souza da Paz, 33 anos, atravessa a Região Metropolitana todos os dias da semana. Do Sul ao Oeste. Quatro cidades, um metrô, três ônibus. Ele mora no Cabo de Santo Agostinho e trabalha em Camaragibe

Eficiência, no entanto, é a última das palavras que o morador Fábio Souza da Paz usaria para definir o transporte público de passageiros da RMR. "A desorganização é total. Tanto das empresas que operam o sistema quanto da gestão. O Estado não fiscaliza, não exige qualidade. Quem cobra é o usuário, mas esse não é ouvido", critica. É extensa a lista de reclamações: não há horários fixos; os ônibus são insuficientes; as filas, sem organização; e os terminais, sem controle. "Não tem como evitar o estresse. A gente é punido por depender do transporte público", lamenta. As imagens de estações do BRT depredadas ou inacabadas são o retrato de como erros de concepção e execução do projeto conseguiram transformar o que seria o transporte do futuro em mais uma dor de cabeça para o cidadão da metrópole.

A gestão do transporte público passa ao largo dos municípios. Até hoje, mais de uma década após a criação do Grande Recife Consórcio de Transportes, só duas cidades da RMR aderiram ao modelo: Recife e Olinda. A falta de articulação deixou pelo caminho outro consórcio metropolitano, o de resíduos sólidos. Esse nem do papel saiu. Entre as medidas previstas, estava a criação de um aterro na parte oeste metropolitana, em São Lourenço da Mata. Seria uma forma de reduzir os custos com a destinação final do lixo das cidades localizadas naquele pedaço da RMR.

RACIONALIDADE

Com exceção de Camaragibe (que ainda possui lixão), todo os resíduos sólidos da região são depositados em dois aterros sanitários privados e um público, localizados em Jaboatão dos Guararapes e Ipojuca, ao Sul, e em Igarassu, ao Norte. A lógica é simples: se os municípios trabalhassem consorciados, desde a coleta até a destinação final, os gastos seriam racionalizados. "A gestão tem que ser metropolitana. É uma deseconomia brutal. Nós, os cidadãos, estamos pagando o combustível que se perde para botar lixo de um lado para o outro dessa cidade metrópole. Tem estudos há anos sobre o novo aterro. Só esperando uma decisão", pontua o arquiteto e urbanista Paulo Roberto Barros e Silva.

A implantação do consórcio metropolitano de resíduos sólidos é uma das diretrizes do PDUI. "Nas consultas, mais da metade dos municípios responderam que tinham interesse em fazer o consórcio. Outros disseram que queriam só para o destino final, e não para a coleta. Vamos discutir o formato com os prefeitos eleitos, se vai ser único ou se será regionalizado", explica Sônia Calheiros, diretora de Planejamento e Ordenamento Territorial da agência Condepe/Fidem.

Outra orientação do PDUI é a adoção de metas para ampliar a coleta seletiva, que hoje é baixíssima. Só cerca de 3% do lixo reciclável produzido na RMR tem destino reutilizável. A ideia é consorciar os municípios para que eles se organizem e trabalhem junto às cooperativas de catadores para reciclar mais e produzir menos lixo destinado aos aterros.

Não precisa nem olhar as omissões do passado para constatar o quanto a falta de racionalização da gestão metropolitana segue comprometendo a prestação do serviço aos seus moradores. Na pandemia, praticamente todos os hospitais de campanha provisórios criados para tratar pacientes com sintomas do novo coronavírus ficaram concentrados no Recife. Sete só na capital.

Em meio a uma emergência de consequências tão graves, cada um cuidou do seu pedaço. "É um equívoco histórico. As cidades estão erradas, na forma de se locomover, de adensar, de equacionar os investimentos na saúde, na educação, de pensar o crescimento sustentável. Não dá para querer resolver os problemas isoladamente. A gente não planeja nada. Fica só apagando incêndio", critica o empresário Avelar Loureiro Filho, à frente do Movimento Pró-Pernambuco, que tem no planejamento urbano metropolitano uma de suas principais bandeiras. Já são cerca de 40 entidades do setor produtivo reunidas no movimento com o propósito de repensar, junto com o poder público, a forma de crescimento da metrópole.

FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM - Moro numa área onde não há saneamento e nos meses de verão as torneiras chegam a ficar vazias por até 20 dias. Mas, para mim, o pior serviço é o do transporte público. Só piora a cada ano. Eu vivo cenas de horror diariamente, espremida em ônibus lotados, sem horários certos, sem qualquer tipo de planejamento. Como moradora da Região Metropolitana do Recife me sinto desrespeitada na minha condição de cidadã", afirma a professora Mirtes Ramos, moradora de Camaragibe

Cidadã dessa cidade única, a professora Mirtes Ramos, 52 anos, mora no bairro do Timbi, em Camaragibe. Lá não há tratamento de esgoto. As casas possuem fossas. De tempos em tempos, os moradores contratam o serviço de um caminhão que vai recolher os dejetos. No verão, as torneiras ficam sem água por até 20 dias. "Saneamento básico, aqui, não existe", diz. Diariamente, a professora faz o caminho inverso de Fábio, o morador do Cabo. Ela sai de Camaragibe para trabalhar no Recife. Experiência que Mirtes chama de "cenas de horror" diárias. Tanto que, se precisar usar o ônibus no fim de semana, para o lazer, prefere ficar em casa. "Tudo para evitar o transporte público. Já basta o que passo durante a semana."

São queixas que se eternizam. Houve um momento forte do planejamento urbano da RMR, entre as décadas de 1970 e 1990, numa época de fartos recursos federais para bancar os projetos metropolitanos. Depois, veio um apagão. O PDUI chega após anos de ausência de planejamento urbano regional, quando as cidades ganharam protagonismo e as decisões consorciadas foram deixadas de lado. Num Brasil de crise pós-pandemia, a escassez do dinheiro público obriga a adotar outras estratégias. O desafio agora é fazer mais com menos. E, como não há mais tempo a perder, fazer juntos.

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