Déficit da Previdência compromete dois anos de arrecadação dos municípios de Pernambuco

Em mais uma reportagem sobre os desafios que os prefeitos eleitos vão enfrentar em seus mandatos, o Jornal do Commercio mostra o problema crônico do déficit da Previdência. Sem reforma ou soluções, a expectativa é que ainda nesta década grande parte dos 148 municípios do Estado que aderiram ao Regime Próprio de Previdência quebrem
Leonardo Spinelli
Publicado em 04/10/2020 às 6:30
APOSENTADOS É preciso manter atenção aos repasses do INSS Foto: YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM


Resumo da matéria

  • Para pagar o débito de seus municípios com a Previdência, prefeitos eleitos teriam que passar dois anos sem fazer nenhuma outra despesa
  • Grandes municípios como São Paulo podem perder a capacidade de investimento em até cinco anos, aponta economista. Recife vem perdendo capacidade de investir
  • Há pouco interesse dos prefeitos em resolver o problema porque o tema não rende votos
  • Gastos com pessoal da ativa também compromete mais da metade da receita dos municípios e reforma administrativa não seria, necessariamente, uma solução, já que existem dispositivos legais previstos para demissão por baixa produção. Presidente do TCE aponta que faltam leis complementares para estabelecer critérios de demissão


Os prefeitos eleitos no próximo dia 15 de novembro vão herdar um problema que preferem não debater com seus adversários na campanha. O tema é impopular e de difícil solução. Na última reforma de 2016, o déficit das previdências municipais foi deixado pelo Congresso Nacional para que os gestores das cidades resolvessem. Um embaraço avaliado em R$ 45 bilhões, em 2019, para municípios do Estado, que geram receita corrente líquida (RCL) de R$ 22 bilhões. Para pagar essa conta com seus aposentados, os prefeitos pernambucanos teriam que passar dois anos sem realizar qualquer outro tipo de despesa.

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Os dados consolidados são do Tribunal de Contas do Estado. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que a dívida dos municípios não pode ultrapassar 1,2 vez a RCL e, neste caso, está em mais de duas vezes. Essa conta não vence em dois anos, mas em uma década. "É provável que os prefeitos eleitos não terão condições de pagar essa conta e isso terá um impacto sério na manutenção dos serviços, pois o pagamento da aposentadoria é um gasto obrigatório", alerta o gerente de Previdência e Gestão Fiscal do TCE, José Iramar da Rocha.

JONAS SANTOS / DIVULGAÇÃO - PETROLINA Pavimentação. Sem resolver previdência, municípios vão perder capacidade de investir

Segundo ele, não há uma solução de curto prazo. Dos servidores em atividade que contribuem com os chamados Regimes Próprios de Previdência (RPPS), grande parte se aposenta em até 10 anos. Com a saída gradual, as contribuições são reduzidas, o que onera ainda mais o sistema.

Reformas que foram feitas ao longo dos últimos anos trarão pouco efeito prático, como a Emenda Constitucional 41/2003 que passou a adotar redutores nas aposentadorias de servidores públicos. Boa parte ainda vai se aposentar com o salário da ativa. "Grande parte dos servidores vão se aposentar pelas emendas constitucionais 20/1998 e 47/2005 que preveem integralidade e a paridade dos servidores", diz o técnico. Ou seja, além de poderem se aposentar com o último salário, os aposentados terão aumento no benefício, caso o pessoal ativo da categoria a qual façam parte tenham reajuste salarial.

Assim como o Estado de Pernambuco, que todo ano compromete R$ 3 bilhões para completar a folha de pagamento dos aposentados e pensionistas, os municípios também estão no limite das contas. Engessados com folha de pagamento, manutenção da máquina pública e com gastos obrigatórios em educação e saúde, este é um passivo que, no final das contas, é compensado com as despesas discricionárias. Ou seja, as prefeituras investem cada vez menos em obras e serviços e a qualidade dos serviços públicos também diminui.

FOLHA ATRASADA

Essa conta tem o potencial de sobrar até mesmo para os próprios aposentados e pessoal da ativa. "Com a pandemia, que diminui a arrecadação, o risco é ver meses de folha de pagamento atrasadas", diz Rocha.

Raul Velloso, economista especialista em contas públicas, diz que a previdência é hoje o principal problema enfrentado pelos municípios, inclusive os grandes. Ele realizou um cálculo mostrando que o passivo atuarial da cidade de São Paulo vai comprometer os investimentos em obras em até cinco anos. "A previsão de crescimento do déficit é de 6% acima da inflação", conta. "Com a pandemia piora e a receita não vai pagar esse crescimento", avalia.

Com 71% de arrecadação própria, São Paulo é o município brasileiro que menos precisa de repasses federais e estaduais em sua receita total. "Em 2010 São Paulo investia R$ 29 bilhões, ano passado investiu R$ 10 bilhões. Perdeu 2/3 da capacidade de investimento. O cálculo que faço das projeções oficiais do passivo atuarial é que em cinco anos SP vai perder sua capacidade de investir", diz. "Algo semelhante deve acontecer nas capitais do Nordeste. O Rio de Janeiro, por exemplo, já quebrou."

O Recife, que é a quinta capital brasileira com a maior proporção de arrecadação própria, 51,5%, segundo análise do Tesouro Nacional, já perdeu pelo menos 30% de sua capacidade de investimento desde 2013. Naquele ano a cidade reportou, em seu balanço orçamentário, investimentos na ordem de R$ 530 milhões. No ano passado foram R$ 362 milhões.

Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem - No Recife a administração municipal apostou na área de segurança comunitária com projeto do Compaz, mas não teve recursos para entregar todas as unidades prometidas

Para reaver a capacidade de investimento dos municípios, Velloso tem um projeto de financiamento de obras públicas que foi criado no Peru. A proposta é financiar projetos de obras por meio de certificados emitidos pelos Tesouros. Esses papeis valeriam para pagar qualquer tributo no futuro e, dessa forma, as empresas vencedoras das licitações fariam os investimentos com recursos próprios ou financiados e depois abateriam os valores com os certificados de impostos. "A solução de impostos por obras é perfeita para os municípios", diz. Segundo ele, a ideia abre espaços orçamentários.

Sem soluções inovadoras, os municípios andam a passos lentos, inclusive em iniciativas que são pensadas para ser a marca das gestões. No Recife, a administração de Geraldo Julio apostou na área de segurança comunitária com projeto do Compaz, inspirado na experiência colombiana das Bibliotecas Parques. Esses centros trazem serviços educacionais, esportivos e de bem-estar às comunidades.

Apesar de importante, desde 2013 a Prefeitura sofre para entregar as unidades. Naquele ano, ainda no seu primeiro mandato, Geraldo Julio prometeu a construção de cinco centros de cidadania. Entregou apenas três. Dos cerca de R$ 33 milhões anunciados na construção dos três Compaz entregues, o município entrou com menos de R$ 10 milhões, ou 30% do total. O restante veio de convênios com o governo federal e estadual. Uma estrutura que depois de pronta custa ao município cerca de R$ 13 mil mensais para sua manutenção.

As contas engessadas também atrapalham outros municípios grandes. Em Jaboatão, onde Anderson Ferreira tenta a reeleição, o prefeito aproveitou que suas contas ainda permitem e pegou R$ 120 milhões emprestados da Caixa, para fazer valer a marca de sua gestão, que são as obras de pavimentação das ruas. O Portal da Transparência do muncípio não traz os balanços e relatórios fiscais da gestão, apenas algumas atas e uma apresentação em PDF das contas de 2018, mostrando que o município estava gastava 51,65% de sua RCL com pessoal, acima do limite prudencial estabelecido pela LRF de 51,3%.

Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem - Presidente do TCE, Dirceu Rodolfo conta que nos municípios do interior o déficit dos sistemas próprios se agravam porque tem muita contratação excepcional de pessoal. Servidores sem concurso não contribuem com o regime próprio

Em Caruaru e Petrolina, no interior do Estado, a história se repete. Raquel Lyra leva para o palanque o argumento de ter aumentado os recursos na rede de ensino de Caruaru. Foram R$ 31 milhões em 2019, cerca de 40% dos R$ 86 milhões do investimento realizado em todas as áreas de atuação da prefeitura. Miguel Coelho quer reconquistar os votos dos petrolinenses mostrando pavimentações realizadas em importantes vias do município, a exemplo os R$ 7 milhões empregados na duplicação da Estrada da Banana, de um total de R$ 200 milhões em obras neste segmento.

PEQUENOS

O presidente da Associação dos Municípios de Pernambuco (Amupe), José Patriota, relata que a situação é mais complicada para os municípios que têm menos de 50 mil habitantes. Nestas cidades, a arrecadação própria não cobre nem 10% da receita municipal. São totalmente dependentes dos repasses federais e estaduais.

Segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com a paralisação da economia devido à pandemia, o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) registrou uma queda de 10,4% em setembro em relação ao mesmo mês do ano passado.

NE10 - "O cálculo que faço das projeções oficiais do passivo atuarial é que em cinco anos São Paulo vai perder sua capacidade de investir. Algo semelhante deve acontecer nas capitais do Nordeste. O Rio, por exemplo, já quebrou", diz o economista Raul Velloso

"Municípios acima de 200 mil habitantes têm uma dinâmica econômica e se recuperam mais rápido. Mas aqueles com até 50 mil, de forma geral, e com rara exceção, encontra dificuldades para empatar as contas", diz Patriota. Segundo ele, a menor arrecadação dos pequenos e as despesas fixas elevadas vai fazer com que muitos prefeitos desrespeitem a LRF, já que vão deixar restos a pagar para a próxima administração, o que é vetado pela lei. "Muitos prefeitos vão fechar o mandato e ficar na LRF, foi um ano de calamidade e é difícil, por mais que o prefeito tenha sido um gestor eficiente, ele herdou problemas, como o déficit da previdência. Além disso, não conseguimos suspender os pagamentos de precatórios, muitos municípios estão bloqueados pela Justiça. Isso tudo desmantela qualquer planejamento", diz.

RESOLUÇÃO NÃO RENDE VOTOS

Segundo o TCE, pelo menos 1/4 dos municípios pernambucanos estão no limite, das contas públicas, num quadro fiscal que foi piorado pela pandemia. Além disso, há pouco interesse em resolver o problema da previdência. "Os prefeitos são pragmáticos. Previdência não dá voto e é uma reforma que só trará frutos em 10, 15 anos. Além disso, falta a cultura previdenciária no Brasil, os servidores acham que está tudo garantido", diz o gerente de Previdência e Gestão Fiscal do TCE, José Iramar da Rocha.

A previdência se tornou um grande problema pela questão do envelhecimento da população. Com as pessoas vivendo mais, elas terminam por exigir mais dos sistemas. Também há descontrole das contas públicas. "No interior tem muita contratação de pessoal por excepcional interesse público. São servidores que entram sem concurso, professores, pessoal administrativo. Passam dois anos, mas não contribuem com o regime próprio. Esse pessoal contribui com o regime geral", diz o presidente do TCE, Dirceu Rodolfo. "Ou seja, você está gastando com uma folha que não terá recolhimento para o sistema próprio e isso aumenta ainda mais o déficit."

ARTES JC - DIVIDA01

ARTES JC - DIVIDA03

Outro fator que compromete a solvência fiscal dos municípios é o gasto com o pessoal da ativa. Apesar de ser um problema que tem soluções mais fáceis, inclusive previstas nas legislação, como a suspensão de contratação e até mesmo a demissão de pessoal caso haja um descontrole na relação entre receita e despesa, um comprometimento muito alto com pessoal representa pouco espaço fiscal para lidar com cenários em que ocorre redução de arrecadação.

"Os Estados e municípios estão atrasados na questão das reformas da Previdência e Administrativa e os rumos dessa última não me parecem claros. Há uma demonização do servidor público e o que mais se tem são professores, que não ganham tanto", diz o pesquisador e diretor de pesquisas da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Luis Henrique Romani.

Em relação à estabilidade do servidor, grande tema da reforma administrativa, o presidente do TCE, Dirceu Rodolfo, vê duas questões. Ele concorda que há uma acomodação por parte do funcionário, mas "não ter estabilidade traz o problema da impessoalidade, a porta republicana do concurso evita que o servidor fique na mão do príncipe de plantão."

Há quem defenda estabilidade apenas para as carreiras típicas de Estado, mas Rodolfo salienta que, mesmo nesse caso, é necessário um debate mais aprofundado, como no caso dos professores. "Para ocupações como motoristas eu concordo mas, na educação, a coisa muda. São muitas matizes de cores."

A Constituição já prevê casos de demissão por desempenho e por questões fiscais. "O que falta é a lei complementar para trazer os critérios de demissão no caso da falta de um bom desempenho", relata.

Quando há extrapolação do limite de gastos com pessoal (para estados e municípios o limite é de 60% da RCL), a LRF prevê que o gestor tem dois quadrimestres para se enquadrar, reduzindo funções gratificadas e o percentual de comissionados.

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