Prerrogativa

Confusão entre Joel da Harpa e comandante da PM: até onde vai o poder fiscalizador de um parlamentar?

Houve confusão envolvendo o deputado Joel da Harpa e um comandante que impediu a entrada do parlamentar a um local de vacinação

Cadastrado por

Cássio Oliveira

Publicado em 09/04/2021 às 13:06 | Atualizado em 13/04/2021 às 8:42
Joel da Harpa esteve no 6º Batalhão da PM para fiscalizar a vacinação de policiais, mas não pôde entrar em um auditório - REPRODUÇÃO DE VÍDEO

Até onde vai o poder fiscalizador de um parlamentar? A pergunta veio à tona após o episódio envolvendo o deputado estadual Joel da Harpa (PP), que entrou em discussão e troca de empurrões com o comandante do 6º Batalhão da Polícia Militar, Alexandre Tavares, durante a vacinação contra a covid-19 de policiais, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR).

A confusão ocorreu depois de o deputado querer entrar no auditório do local, onde estava ocorrendo a vacinação, para fiscalizar o processo. No entanto, o comandante do batalhão não permitiu a entrada. Em vídeo, é possível ouvir o deputado questionando se o policial iria removê-lo do local, o comandante disse que sim e o empurrou. Em seguida, o deputado revida e militares tentam apartar.

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Especialistas ouvidos pelo JC, destacam que a fiscalização é uma prerrogativa dada aos parlamentares na Constituição, mas isso não significa que não existam limites para essa fiscalização. "A Constituição não diz explicitamente que um parlamentar tem o direito de entrar em algum recinto. A Constituição dá ao parlamentar o direito de fiscalizar, mas o Supremo já disse, e há precedente, que essa fiscalização é do parlamento, um órgão colegiado. O STF entendeu inconstitucional uma norma do Estado de São Paulo, por exemplo, que atribuía individualmente aos deputados o poder de fiscalizar as ações administrativas do Executivo. Houve lei aprovada prevendo fiscalização individual e o Supremo entendeu que isso é inconstitucional", explicou o professor de Direito Constitucional Marcelo Labanca.

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Por meio de um vídeo, gravado inicialmente pelo próprio Joel da Harpa, é possível observar o momento em que o deputado afirma que iria mostrar a vacinação. No entanto, antes de conseguir entrar, o comandante diz: "o senhor não vai passar para o auditório", repetidas vezes. Em seguida, Joel rebate: "Vai se colocar na minha frente?". Em determinado momento, o deputado e o comandante da PM ficam frente a frente, e Joel da Harpa afirma que não iria se retirar e questiona: "Vai me tirar?". O comandante responde ao afirmar que sim, e tenta puxar o parlamentar. A partir deste momento, os dois trocam agressões.

O sistema jurídico dá normas que podem dar respostas para violações. Se uma autoridade ultrapassa o limite de poder, há Lei do Abuso de Autoridade. O parlamentar é uma autoridade e não pode abusar disso. O acesso a recintos tem a ver com o desenvolvimento de sua atribuição funcional. No Brasil, se acha que pode ingressar em qualquer recinto sem ser vinculado a suas atribuições.
Marcelo Labanca, professor de Direito Constitucional.

Na visão de Marcelo Labanca, é necessária a participação em uma comissão para fiscalizações do tipo que Joel quis fazer no batalhão. "Quando falo de forma colegiada, o parlamentar atua ou pelo plenário ou por comissões. Quem pode fazer essa fiscalização não é Joel da Harpa, é a comissão da Alepe (Assembleia Legislativa de Pernambuco), ele precisa da concordância dos membros. Comissões possuem poder fiscalizatório, a Constituição dá poder à comissão", destacou.

Em Pernambuco, já há quem queira mudar o entendimento. É o caso da deputada estadual Clarissa Tércio (PSC), que destacou ter apresentado projeto para assegurar as prerrogativas dos deputados a terem acesso e a fiscalizarem em espaços e órgãos públicos estaduais e municipais. "Isso se deu por conta das sucessivas tentativas de fiscalização por parte de parlamentares sem êxito", disse ela, como informou o Blog de Jamildo.

A proposta prevê o acesso dos deputados que estejam sozinhos ou acompanhados dos seus assessores, desde que identificados aos órgãos públicos estaduais e municipais. E também prevê o direito ao acesso a requisição de quaisquer documentos e informações. Durante discurso, Clarissa citou como exemplo o episódio que aconteceu com a deputada Priscila Krause (DEM), que foi impedida de entrar no almoxarifado da Secretaria de Saúde do Recife para fiscalizar estoque de materiais hospitalares. A Secretaria afirmou, em nota, que não impediu o acesso da parlamentar e que estava, apenas, garantindo que a visita ocorresse seguindo protocolos sanitários. Mas Priscila rebateu afirmando que, ao chegar no local, foi informada que não havia autorização para sua entrada.

Em nível federal, um projeto do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) que assegurava o livre acesso de deputados federais e senadores a documentos e a repartições públicas federais da administração direta e indireta, como ministérios, autarquias, fundações e empresas estatais. No entanto, a proposta foi arquivada pela mesa diretora da Câmara dos Deputados em 2019.

Gabriel Monteiro

Casos como o de Joel e Priscila se repetem pelo País. No Rio de Janeiro, por exemplo, O Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremerj) entrou com uma representação no Ministério Público contra o vereador e youtuber Gabriel Monteiro (PSD-RJ). O conselho acusa Monteiro de abuso de autoridade. A denúncia ocorreu após o vereador divulgar no próprio canal na internet um vídeo em que aparece dando voz de prisão para uma médica em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), na zona norte do Rio.

Nas imagens, ele aparece andando pela unidade de saúde, abrindo portas de consultórios, e dando voz de prisão a funcionários. Ele alegou que buscava atendimento para os pacientes que aguardavam na UPA. O vídeo termina com uma médica acusada de estar dormindo na unidade, encaminhada para a delegacia com apoio de uma viatura da PM. Na distrital, Gabriel mostra o boletim de ocorrência feito na unidade. A profissional também prestou esclarecimentos e foi liberada. Para o Cremerj, houve abuso de autoridade na ação do vereador. O órgão recomenda que pacientes que discordem do atendimento prestado façam uma denúncia na entidade.

Presidente da Comissão de Direito Parlamentar da OAB em Pernambuco, o advogado Roberto Rocha Leandro ressalta que, além das prerrogativas dos parlamentares, o momento de crise sanitária deve ser levado em conta e, até, se sobrepor. "Até mesmo sem ser de comissão, se o parlamentar for designado para representar o Legislativo naquele espaço, ele se reveste de autoridade. Mas, se vai ao seu bel-prazer, a determinada repartição ou determinada localidade com bloqueio policial, é mais delicado, sobretudo num contexto de calamidade pública, um contexto de pandemia, onde a aglomeração, independentemente do cargo da pessoa, é um problema. Então, um limite sanitário pode sim se colocar como mais importante do que uma premissa de deputado de fiscalização", destacou. "O deputado pode oficiar e entrar em contato por meios legais, mas não pode impor a presença física dele em salas de vacinação, que veem sendo restritas à limitação de entrada. Elas devem ser regulamentadas", completou.

Joel da Harpa

Em vídeos nos stories do Instagram, Joel da Harpa disse que estava exercendo seu papel de fiscalizador. "Fui como parlamentar, como fiscal do Poder Executivo, verificar o número de doses e verificar a vacinação em si, que é algo de interesse público. A população quer saber onde e como estão sendo aplicadas as vacinas. Fui ao sexto batalhão fazer isso e registrar o nosso trabalho, pois o trabalho precisa de transparência, mostrar à sociedade em redes sociais como estava sendo a vacinação", comentou. "O parlamentar é eleito democraticamente, é fiscal do Executivo, é essa uma das prerrogativas", completou. 

Para Roberto Rocha, se faz necessária uma melhor definição sobre o tema. "Não é tão bem definida a atuação parlamentar fora de seu espaço de trabalho, que seria a casa legislativa. As imunidades estão presentes quando o político atua como parlamentar, mas estar fisicamente em qualquer espaço extrapola essa premissa. Deputados não estão acima da lei. A fiscalização é estabelecida para o Legislativo e deve fiscalizar, mas existem meios para isso. Se a intervenção fosse em um espaço público, após uma denúncia de abuso de poder do Executivo, por exemplo, e o parlamentar chega ao local e faz questão de fiscalizar, poderia até justificar. Mas, em momento de isolamento social por motivos sanitários a autoridade querer intervir numa ação em local isolado, sobre argumento de fiscalização, é muito frágil e isso não justifica", comentou.

Por meio de nota, a Polícia Militar afirmou que Joel da Harpa, "sem utilização de máscara para prevenção à transmissão de covid-19, tentou entrar na sala de vacinação instalada na sede do 6º Batalhão, em Prazeres, e foi impedido em respeito à normas sanitárias". Ainda no texto, a PM disse que, "sem comunicação prévia e sem utilizar máscara, o deputado chegou à unidade militar e foi permitido seu acesso à área externa e algumas dependências do batalhão, onde pode realizar filmagens".

Outro lado

Em suas redes sociais o deputado rebateu e mostrou vídeo em que chega à unidade de máscara. Ele estava filmando o pátio e tudo corria, aparentemente, bem, até que ele seguiu em direção ao auditório e a confusão teve início quando o comandante o impediu. "Depois desse fato, muita coisa aconteceu, meu celular caiu no chão, não consegui mais registrar nada e na sala do comandante minha máscara se perdeu, deve ter caído, e no segundo momento eu não tinha outra máscara no carro ou no bolso e o comandante tentou me colocar para fora à força, me agredindo de forma truculenta e arbitrária", afirma Joel.

A PM diz que o comandante fez isso porque eu estava sem máscara. É mentira. A máscara se perdeu no tumulto. Estamos tomando todas as medidas e providências, abrindo processo na corregedoria, pediremos processo administrativo.
Joel da Harpa, deputado estadual em Pernambuco.

Professor de Direito Constitucional e membro da Escola Superior de Advocacia de Pernambuco (ESA-PE), Antonio Ribeiro Júnior também destaca que a Constituição dá a prerrogativa de fiscalização a deputados e vereadores. Todavia, segundo o especialista, em meio à pandemia, há um conflito de direitos. "Há o direito à fiscalização em conflito com o direito à saúde, à vida e a medidas sanitárias. Tivemos o direito à liberdade religiosa sendo restringido em razão da pandemia, direito de circulação também. Então, é cristalino que o deputado tem direito há exercer a prerrogativa de fiscalizar. Entretanto, diante desse momento de excepcionalidade, o que tem entendido os tribunais é que direitos outros são relativizados. O direito não deixa de existir, mas deve seguir novos parâmetros", comentou.

Sobre a atuação individual ou de forma colegiada, Antonio disse haver uma ideia de que a atividade de fiscalização é irrestrita. "Há uma discussão sobre se o deputado, enquanto membro do Legislativo, pode atuar individualmente para fiscalizar in loco ou requerer informações. Há uma necessidade de que essa fiscalização decorra da atividade legislativa. Em muitos casos há extrapolação da prerrogativa de fiscalizar enquanto o deputado está fora de sua atividade legislativa. A fiscalização não deve ser pensada como garantia de que em qualquer momento, em qualquer situação, somente por estar no cargo de deputado, senador, vereador, há blindagem que possa garantir fiscalização indiscriminada, de forma ampla", comentou. "Há uma limitação à ideia de que a atividade de fiscalização é ampla, irrestrita e absoluta. Ao que parece, o deputado (Joel) não foi oficialmente como membro do Legislativo, não informou da visita previamente, como disse a PM em nota, foi como pessoa física, que buscava uma fiscalização. Talvez, por não existir o formalismo o caso tenha se dado dessa forma", concluiu Antonio.

Além da nota da PM, a reportagem solicitou, por e-mail, posicionamento da Secretaria de Defesa Social e da Corregedoria sobre o assunto, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

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