Durante visita ao Recife no domingo (5), o ex-juiz e pré-candidato à Presidência da República Sergio Moro (Podemos) pôs na cabeça o folclórico chapéu de cangaceiro. O adereço associado instantaneamente à cultura nordestina, que costuma aparecer na cabeça dos presidenciáveis a cada eleição, marca os primeiros passos do ex-ministro em busca de votos na região considerada reduto político do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), um de seus principais adversários.
Assim como Moro, nomes que disputaram outras eleições fizeram algo semelhante, incluindo a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e os então candidatos Geraldo Alckmin (PSDB), Fernando Haddad (PT), José Serra (PSDB), Aécio Neves (PSDB), o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), entre outros.
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O presidente Jair Bolsonaro (PL) vestiu a peça em mais de uma oportunidade, tanto durante sua campanha, em 2018, quanto em viagens pelo Nordeste depois de eleito. O mandatário também tem o costume de usar um chapéu de vaqueiro, menor e mais arredondado, quando visita a região. Ele fez uso do item na inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista, na Bahia, em 2019, e durante viagem ao interior do Piauí em 2020, por exemplo.
"Recorrer ao estereótipo é, sem dúvidas, uma estratégia de comunicação. Com isso, positiva ou negativamente, o candidato se projeta na mídia”, aponta o sociólogo Igor Damasceno.
“Este elemento comunicativo integra o que podemos chamar de marcas discursivas dos clichês e pode se relacionar com interações entre identidades regionais e a mídia. É algo que tem muita adesão pela simplicidade no discurso e na performance", sublinha.
Apesar dos acenos — ou tentativas — ao Nordeste, que é o segundo maior colégio eleitoral entre as regiões do País, com 39 milhões de eleitores, usar o chapéu de cangaceiro tem surtido pouco ou nenhum efeito para quem o coloca na cabeça. É o que explica o cientista político Elton Gomes, professor da Faculdade Damas.
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"Em geral, o que temos na política brasileira, sobretudo na Nova República, é que uso de símbolos culturais, como o chapéu de cangaceiro, não tende a colar muito. Não temos grandes histórias de sucesso", afirma Gomes.
Na mesma linha, o cientista político Vanuccio Pimentel, professor da Asces-Unita, ressalta que isso pode apenas potencializar aproximação com grupos que já estavam dispostos a votar em determinado candidato. “Eu, particularmente, não penso que seja uma forma de ampliar potencial de votos, mas é uma maneira de criar empatia com quem já é simpatizante”, diz Vanuccio.
Redefinição da identidade nordestina
Confirmando o que apontam os especialistas, o uso do chapéu por Moro rendeu enormes críticas ao ex-juiz, exceto entre aqueles que ‘enfeitaram’ o político do Podemos com o adereço. Segundo o antropólogo Mauro Lins, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a reação ao comportamento de Moro tem sua gênese na época em que vivemos, que busca ressignificar a identidade da região Nordeste.
“Nas redes, vimos muitas pessoas incomodadas, pois vivemos em uma era de abundância tecnológica, uma fase de redefinição daquilo que entendemos como a identidade nordestina, que é muito complexa e não deve ser reduzida a apenas elementos de indumentárias”, argumenta Mauro Lins.
Para o jornalista e pesquisador em comunicação Antonio Lira,outra problemática em torno da utilização de símbolos regionais tem a ver com a identificação de quem o usa com a localidade. "Em 2018, Fernando Haddad (PT) quando esteve aqui durante sua campanha também usou o chapéu, mas não foi tão criticado quanto Moro está sendo agora. Porque o que há nesse caso é a identificação da pessoa com a região", diz Lira.
"Haddad é do Sudeste? É. Mas em 2018, ele chegou aqui representando Lula, que é de Pernambuco. Além disso, o projeto petista tem muita relação muito próxima com o Nordeste, tanto é que isso se materializa nas eleições e pesquisas."
Faltam planos para o Nordeste
Para o cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco Adriano Oliveira, essa insatisfação também tem outra motivação: os nordestinos querem algo para além do debate identitário, querem mais educação, obras estruturadoras importantes para o desenvolvimento da região e combate à seca, por exemplo.
“O uso do chapéu mostra, por parte dos candidatos, o desconhecimento da região, especialmente, no que se refere aos problemas e soluções para resolver os desafios do Nordeste”, argumenta Oliveira.
“Sergio Moro poderia ter desembarcado por aqui para debater o problema da água, da seca, para debater a industrialização da região, o fortalecimento da agricultura. Mas não, sua fala ficou restrita ao combate à corrupção e ao uso de um chapéu de vaqueiro. O eleitor nordestino não quer saber disso. Ele quer saber como o Nordeste pode se desenvolver, se tornar um celeiro de empregos, como pode interagir com o mercado nacional e internacional”, emenda o professor.
No mesmo sentido, o economista e professor do Unit-PE Werson Kaval afirma que falta ao Nordeste um projeto de desenvolvimento que seja levado a sério. "Algumas obras essenciais para o Nordeste sequer começaram a ser construídas. Outras se arrastam há anos, seja com relação ao combate à estiagem, como a Transposição, ou à questão dos transportes, como a Transnordestina”, diz.
“Não existe solução para o País sem solução para o Nordeste", completa Kaval, lembrando que diante da escassez das fontes hídricas, as regiões Sudeste e Centro-Oeste, por exemplo, usaram mais energia eólica, produzida principalmente no Nordeste.
Outras questões, como as que têm ligação com saúde, educação e desenvolvimento tecnológico, também importam ao Nordeste. É o que frisa o cientista político e historiador Alex Ribeiro. “A região não é diferente das outras e também precisa de atenção a essas temáticas”, pontua.
“É preciso, cada vez mais, desconstruir essa ideia de que o Nordeste é atrelado apenas à seca e às desigualdades sociais. Afinal, apesar de cada localidade ter sua especificidade, não pode ser remetida a algo pitoresco”, conclui.
Nordeste só usa chapéu de Lampião para homenagear Gonzaga, mas classe política insiste na imagem folclórica
Políticos de fora do Nordeste tentam se apresentar com identidade cultural que não desenvolveram
Numa de suas “entrevistas” com agentes da Polícia Federal na época da repressão dos anos 70, o internacionalmente reconhecido artista plástico Paulo Brusky foi interpelado por um delegado que o indagou com a seguinte pergunta: Quer dizer que se eu pegar um monte de cópias Xeroz e juntar numa outra cópia, ou se pegar um monte de barquinhos de papel e jogar no Rio Capibaribe, estou fazendo arte?
Brusky respondeu de forma bem cortante: Se você fizer isso, não. Mas se eu fizer isso, estarei fazendo sim.
A imagem serve para mostrar como às vezes os políticos se tornam ridículos quando tomam emprestados certos ícones das mais diversas regiões do Brasil para, forçadamente, mostrar uma identidade que absolutamente não têm e que, ao ostentar um símbolo, só os torna folclóricos.
O chapéu de cangaceiro é um símbolo do que foi o Nordeste no passado, quando Virgulino Ferreira, o Lampião, decidiu produzir, além violência, sua própria indumentária para se diferenciar das “volantes”, como a polícia que o caçava e que trajava roupa caqui. Lampião, efetivamente, criou um padrão no vestuário.
Até porque ele próprio bordava e desenhava suas roupas e virou uma marca na moda de outros justiceiros, de modo que itens como o chapéu adornado com pequenos espelhos colados na aba revirada acabaram definindo um padrão para a imagem do cangaço dentro e fora da região.
Anos depois, Luiz Gonzaga decidiu utilizar-se dessa imagem para cantar as coisas do Nordeste, fazendo o que se poderia chamar de releitura da ação de Lampião no que se refere à música. Sem nunca a associar a violência que o cangaceiro perpetrava.
Gonzaga teve uma compreensão extraordinária do que a música que os cangaceiros cantavam para o sofrimento do Nordeste o incorporou à sua indumentária, com o gibão de luxo do vaqueiro e sua sanfona. Com isso, ele compôs uma imagem que carregava todo simbolismo lúdico que tornou um clássico ícone do folclore nordestino.
O problema é que nos últimos anos, políticos de fora do Nordeste vêm insistindo em querer se apropriar dessa imagem de Gonzaga (não a de Lampião) para transpor uma identidade forçada com a região da qual não têm e não precisam ter para capturar votos.
O último personagem a ter na cabeça um chapéu de cangaceiro foi o ex-ministro Sérgio Moro.
Obviamente, não lhe caiu bem. Como não caiu em Geraldo Alkmin, como não caiu em João Doria e Aécio Neves. Como não caiu em Jair Bolsonaro.
A tentativa do que hoje os pesquisadores chamam de "apropriação cultural" não lhes cai bem. Imagina se Lula ou Ciro Gomes, ou no passado José Sarney e Marco Maciel - tentando capturar votos no Rio Grande do Sul - aparecessem travestidos de bombacha e cuia de chimarrão?
Não cai bem um chapéu de Sérgio Moro como não cai nos demais políticos porque essa não é uma imagem real de quem se propõe a gerir o País.
Mas isso depõe contra o Nordeste que tem assim, mais uma vez, estereotipada sua imagem, não a de Gonzaga e sua belíssima obra musical, mas de Virgulino Lampião como um justiceiro conhecido por sua extrema violência.
Certamente, nenhum nordestino vai votar em Sérgio Moro, como poderá votar em Jair Bolsonaro e João Dória porque eles, numa capital do Nordeste, usaram um chapéu de cangaceiro.
Não cabe. É ruim para eles como é ruim para o Nordeste, que mais uma vez fica referenciado como uma terra de cangaceiros.
Por isso é importante que apoiadores de qualquer candidato não insistam em forçar uma afinidade cultural com candidatos que não a tem.
Ajuda muito a eles. Mas não ajuda ao Nordeste, que hoje trabalha duro para ter uma imagem relacionada a turismo sustentado, energia limpa, hidrogênio verde e empresa de TI e economia exportadora de frutas e empresas de extrema competitividade, claro, juntamente com seus graves problema sociais.
Deixemos o chapéu de cangaceiro para Luiz Gonzaga, que teve autoridade identitária para falar de uma maneira lúdica dos tempos em que o Nordeste sofria - como ainda hoje sofre - de enormes injustiças sociais e forte preconceito.
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