Nesta segunda-feira (6), a Comissão Mista de Orçamento ignorou a decisão da Corte ao rejeitar propostas que dariam mais transparência aos critérios utilizados para distribuir bilhões de reais a um seleto grupo de parlamentares. Os congressistas também se recusaram a limitar a abrangência das áreas que poderão receber recursos públicos nessa modalidade. Ao contrário: o parecer do relator, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), aumentou o rol de despesas contempladas, estimadas em mais de R$ 16 bilhões.
As verbas estão no centro do orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão. O mecanismo consiste na liberação de dinheiro público a deputados e senadores em troca de apoio ao governo de Jair Bolsonaro no Congresso. A distribuição dos recursos ocorre sem critérios claros, cabendo a um grupo de parlamentares alinhados aos interesses do Palácio do Planalto definir como e onde as verbas federais devem ser aplicadas.
A aprovação do parecer de Leal pela comissão representa mais um passo do Congresso para manter, em 2022, o mecanismo atual das emendas de relator. A cúpula do Legislativo tenta destravar as verbas suspensas pelo Supremo e concordou em divulgar apenas parte desses repasses, prometendo um novo modelo para o futuro. As regras para o ano que vem, no entanto, continuam a dar margem para indicações sem nenhum critério de quem será beneficiado e para onde irá o dinheiro federal.
Câmara
A medida contraria o STF em pontos essenciais na investigação sobre o orçamento secreto. O principal deles é a falta de critérios objetivos sobre os beneficiados. Além disso, o relator segue com liberdade para distribuir as verbas a aliados, nos bastidores, sem divisão igualitária entre as bancadas do Congresso, outro ponto questionado pelo Supremo.
O parecer de Leal ainda abre uma brecha para turbinar o valor após a promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que amplia o teto de gastos, permitindo aumentar o limite para todas as emendas parlamentares. Na prática, o relatório aprovado na CMO garante liberdade para o relator escolher a destinação final do dinheiro sem nenhum critério de quem será atendido nas indicações - dois pontos criticados pelo Supremo, que suspendeu a execução dessas verbas no mês passado.
Atualmente, não há um teto para as verbas de emenda de relator, carimbadas com o código RP9. Neste ano, por exemplo, o total autorizado para essas emendas é de R$ 16,9 bilhões, ocupando praticamente metade de todas as verbas com a digital dos congressistas, o que inclui, ainda, a indicação de emendas individuais e de bancada.
O valor final para 2022 só será conhecido na aprovação do Orçamento. Após confrontar o Supremo com a decisão de manter ocultos os nomes dos padrinhos das emendas de relator nos dois últimos anos, a cúpula do Congresso marcou a votação do Orçamento de 2022 para o próximo dia 17. O relatório final, com todas as emendas, só será apresentado na véspera, com intervalo de um dia para discussão na comissão e no plenário. Trata-se de uma estratégia para "tratotar" a tramitação, termo usado no Congresso para definir a manobra.
Hugo Leal repetiu a estratégia dos dois anos anteriores e autorizou para ele mesmo a estratégia de carimbar emendas destinadas a ações e serviços públicos que contemplam praticamente todo o Orçamento da União. No total, serão 22 ações, de saúde até turismo, além das programações já previstas no projeto de Orçamento encaminhado pelo Executivo. A versão anterior listava 20 áreas. "A transparência que foi requisitada, que foi pedida, está sendo feita", disse Hugo Leal. "Isso (critério de distribuição) deveria ter sido modificado na resolução. No parecer preliminar, não vejo como avançarmos nesse sentido."
A decisão aumentou a pressão para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do orçamento secreto. O líder do Cidadania no Senado, Alessandro Vieira (SE), tenta coletar as 27 assinaturas necessárias para pedir a abertura da investigação, que ainda dependeria de um ato do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A CPI, no entanto, não tem apoio suficiente, pois envolveria uma apuração com os próprios parlamentares no alvo.
Proposta que previa teto de R$ 5 bi para orçamento secreto foi rejeitada
Uma das sugestões rejeitadas pelo relator no parecer preliminar limitava as emendas RP9 à correção de erros e omissões na proposta orçamentária, como prevê a Constituição. Isso significa que o relator só poderia alterar o Orçamento se verificasse algum recurso insuficiente na proposta do Executivo, como no caso das aposentadorias e benefícios sociais, e não para turbinar obras potencialmente eleitoreiras. Outra proposta rejeitada sugeria um teto de R$ 5 bilhões para as emendas RP9, caso o relator cortasse as despesas do governo federal para obter os recursos.
A tentativa de distribuir a verba de forma igualitária entre as bancadas do Congresso também foi rejeitada. Diferentes propostas foram apresentadas nesse sentido, dividindo as indicações proporcionalmente entre deputados e senadores ou privilegiando municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mas todas elas ficaram de fora do parecer.
De acordo com especialistas, o fato de o relator poder dividir as verbas nos bastidores com partidos aliados representa a "espinha dorsal" do orçamento secreto. "Não temos nenhuma clareza de como vai ser distribuído o RP-9 e gostaríamos de saber como o relator vai abordar esse tema no relatório final", disse o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).
O relator rejeitou ainda uma mudança para aumentar as regras de publicidade das indicações no Orçamento de 2022, obrigando a publicação das demandas em todas as fases do processo. O Congresso Nacional aprovou um projeto de resolução prevendo um nível de transparência nas indicações daqui para a frente, mas a medida é cercada de questionamentos por abrir brecha para que uma série de solicitações permaneçam em segredo.
Para manter a dinâmica do orçamento secreto em 2022, o relator se ancorou no projeto de resolução aprovado pelo Legislativo no último dia 29. A medida mantém o formato das emendas de relator em um patamar que pode superar R$ 16 bilhões no ano que vem, sem critérios objetivos de distribuição entre os deputados e senadores e com regras de transparência questionadas por técnicos e parlamentares.
"Assim, a despeito de trazerem questões que precisam ser discutidas, não nos resta outra opção a não ser rejeitar as emendas por estarem fora do escopo do relatório preliminar. Apesar disso, consideramos que as sugestões apresentadas devem ser avaliadas como possíveis aprimoramentos da Resolução 1/2006, ou ainda como regras a serem incorporadas em uma nova instrução normativa da CMO sobre as indicações decorrentes de emendas de relator", escreveu o relator ao rejeitar a maioria das sugestões apresentadas.
Outra manobra mantida no parecer preliminar é a possibilidade de o relator cortar despesas obrigatórias para turbinar verbas de interesse eleitoral, como ocorreu no Orçamento de 2021. Alterar isso, de acordo com o relator do Orçamento, seria "engessar excessivamente o cancelamento de despesas obrigatórias e limitar a possibilidade do Congresso atualizá-las e reavaliá-las". Na semana passada, o Senado retirou um dispositivo da PEC dos precatórios que proibia esse movimento.
AS PROPOSTAS REJEITADAS PELO PARECER
Transparência
Aumentar o nível de transparência das emendas do orçamento secreto e detalhar quem indicou cada verba em todas as etapas do processo.
Distribuição
Tornar a distribuição das emendas de relator igualitária entre bancadas do Congresso. A opção foi manter sem critério, de modo que a divisão segue livre para acordos nos bastidores.
Critérios
Estabelecer critérios de repasses, como distribuição proporcional entre as regiões do Brasil ou prioridade a municípios mais pobres.
Limites
Limitar as emendas de relator a R$ 5 bilhões, e outra que restringia as alterações a correção de erros e omissões do Executivo.
Manobra
O relator manteve a brecha que permite cortes em despesas obrigatórias, como aposentadorias, para turbinar as emendas do orçamento secreto.