Depois de seis anos como diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna, o professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco Mozart Neves Ramos, 64 anos, começa 2020 com um novo desafio: coordenar a recém-criada Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). O objetivo é contribuir para melhorar a qualidade das políticas públicas em cidades de médio porte. Nos dois primeiros anos, o foco será educação básica. Nesta entrevista, concedida à repórter Margarida Azevedo, Mozart Ramos, um dos primeiros nomes cotados para ser ministro da Educação de Bolsonaro, avalia o cenário educacional, conta como será seu novo trabalho e diz que não pretende parar nem tão cedo. Químico, professor, ex-reitor da UFPE (de 1995 a 2003) e ex-secretário de Educação de Pernambuco (2003 a 2006), ele tem a educação como combustível para sua luta.
JC – O senhor assumiu a Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP), uma das mais importantes universidades brasileiras. O que significa esse cargo?
MOZART NEVES RAMOS - Tem vários significados para mim. Em primeiro lugar, Sérgio Henrique Ferreira foi um importante pesquisador brasileiro, por quem sempre nutri grande admiração. Essa cátedra vai estudar a qualidade do ensino em cidades de médio porte (100 mil a 500 mil habitantes). Vai procurar mecanismos para melhorar as políticas públicas com ênfase em educação nessas cidades. Será um grande desafio. Mas estou muito animado. Está vinculado ao Instituto de Estudos avançados da USP, não precisa entrar na burocracia de grandes universidades. Isso vai me permitir fazer parcerias e mobilizar municípios para melhorarmos a qualidade da educação pública.
JC – Um dos grandes problemas da educação brasileira é o baixo índice de aprendizagem escolar. Em que nível isso deve ser preocupação?
MOZART – Essa deve ser a grande agenda da educação no Brasil. O País está estagnado desde 1999, quando começamos as primeiras avaliações. A atenção deve se voltar principalmente para os anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio. Estamos melhorando nos anos iniciais, mas de forma ainda pequena. Nos defrontamos com cidades com baixíssimos índices de aprendizagem nos anos iniciais. São Lourenço da Mata, no Grande Recife, por exemplo. Lá, ao término do 5º ano do ensino fundamental, apenas 12, de cada cem alunos, aprenderam o que seria esperado em matemática. É assustador. Precisamos fazer um grande esforço. Outro ponto preocupante é a desigualdade de aprendizagem entre redes de ensino e entre escolas da mesma rede.
JC – E como o seu trabalho poderá contribuir?
MOZART – Estamos fazendo um diagnóstico, com foco nas cidades de médio porte. O epicentro de todo esse estudo será a cidade de Ribeirão Preto (SP), onde está o câmpus da USP em relação à cátedra e ao Instituto de Estudos Avançados. A ideia é constituir redes de cooperação entre cidades de médio porte para que elas possam trocar experiências exitosas. E também criar mecanismos de advocacy, de influir para que os governos, municipal e estadual, possam melhorar a qualidade do ensino oferecido.
JC – Nesse seu trabalho, que focará em cidades de médio porte, há 10 municípios de Pernambuco. Seis no Grande Recife (Cabo, Camaragibe, Igarassu, Olinda, Paulista e São Lourenço da Mata). Os outros quatro – Vitória, Caruaru, Garanhuns e Petrolina – têm câmpus das universidades públicas do Estado. Como UFPE, UFRPE, UPE e Univasf podem contribuir?
MOZART – É inadmissível que as universidades digam que não é com elas os baixíssimos índices de aprendizagem em cidades como as do Grande Recife. Estamos diante de uma oportunidade fantástica de colocar o debate da qualidade da educação básica na agenda das universidades. E em Pernambuco, particularmente, creio muito que será possível.
As universidades têm que entender que se não avançarmos na aprendizagem, vai ser um tiro no pé delas mesmas. A meta 12 do Plano Nacional de Educação é sair dos 18% de jovens de 18 a 24 anos no ensino superior para 33%. Isso só vai acontecer se a gente melhorar a qualidade da educação básica. Porque só botar para dentro da universidade não basta. A taxa de desistência é de 60%, segundo o Inep. Outro foco é investir na formação dos professores. Sem um professor bem formado dificilmente vamos mudar essa realidade. Mas não vai ser tarefa simples.
MOZART – Sim. De cada cem crianças que terminam o 3º ano do ensino fundamental, 55 não sabem ler, contar ou escrever adequadamente. E a maioria tem 9 anos de idade. No Ceará, a criança está alfabetizada aos 7 anos. O Brasil precisa aprender com o Brasil. Já temos bons exemplos. O modelo do Ceará no campo da alfabetização, do ensino fundamental deveria ser copiado pelo restante do País. E que bom que Pernambuco, que tem um belo exemplo de ensino médio, principalmente nas escolas de tempo integral, começa também a fazer, a não querer inventar a roda. Sergipe e Espírito Santo também copiam de forma correta o modelo cearense.
JC – Há um impasse em relação ao percentual que a União deve complementar no Fundeb, hoje de 10%. O governo federal defende 15%. Há uma PEC tramitando que propõe 40%. Qual é a sua opinião?
MOZART – Minha opinião é que esse aumento chegue a pelo menos 15%. Mas surgiu, no apagar das luzes, a perspectiva de 40%, proposta apresentada pela relatora, a deputada Dorinha Rezende. E surpreendeu. Não que o País não precise de mais recurso. Mas entendemos que deve haver equilíbrio entre os recursos destinados pela União de forma complementar a Estados e municípios. Chegar a 40% é muito difícil. O que eu temo, e outros setores da educação também, é que esse entrave relativo ao percentual deixe de lado temas importantes do próprio Fundeb, como a redistribuição com base em mérito. Outra preocupação é em relação ao tempo. A agenda do Congresso está bastante pesada com reforma tributária, reforma administrativa. Isso pode criar dificuldades para o debate do Fundeb no Congresso. Mas imagino que haverá um esforço do próprio governo federal, há pelo menos um consenso de que sem o Fundeb haverá muita dificuldade em manter a saúde financeira para a maioria dos municípios brasileiros que vivem essencialmente do fundo e da redistribuição do ICMS.
JC – A gestão do presidente Bolsonaro acaba de completar um ano. Na sua avaliação, onde ele errou e onde acertou na área da educação?
MOZART – Acho que o erro é estar preocupado com questões ideológicas, com embates não relevantes. Ficar questionando a obra de Paulo Freire, por exemplo. Deixar de reconhecer a obra dele é deixar de reconhecer o valor da educação. O governo deveria estar preocupado com coisas essenciais, como qualidade da aprendizagem, formação dos professores, melhoria da infraestrutura das escolas. Uma agenda positiva de autonomia para as universidades que estão ainda absolutamente estagnadas em gestão para o século 21. O maior mérito, talvez, do Ministério da Educação, foi que os secretários se descolaram um pouco dessa briga, com exceção da Secretaria de Alfabetização. Os secretários se blindaram e procuraram fazer as coisas avançarem, com apoio da Undime, do Consed, do Conselho Nacional de Educação e dos conselhos estaduais.
JC – Não pensa em se aposentar?
MOZART – É sempre uma pergunta difícil. Quando se faz o que gosta, a gente tem um compromisso com o futuro. Mesmo que esse futuro não mais nos pertença daqui a um tempo. Enquanto Deus estiver me dando energia, e vontade de melhorar e contribuir, e eu sentir que as pessoas me procuram, a luta vai continuar. Porque é isso que me motiva. Dostoiévski tem uma frase de que gosto muito. Que a razão da existência humana consiste em não só viver, mas um motivo para viver. Eu tenho feito da educação esse meu grande motivo.