Pedimos ao condutor aposentado Jovide João da Silva que nos contasse como era a vida de quem trabalhava sobre os trilhos, para o encerramento da série sobre o patrimônio ferroviário do Estado. Convite aceito, ele recebeu as repórteres em sua casa, no município de Jaboatão dos Guararapes, numa tarde de sexta-feira, e abriu sua caixinha de lembranças.
Recifense, torcedor do Santa Cruz e com quase 76 anos de idade – completa no próximo sábado – Jovide João vai logo explicando que o condutor não é a pessoa que guia a locomotiva. Aquele é o maquinista. O condutor ficava nos vagões e furava os bilhetes com um alicate, identificando os passageiros.
A história de Jovide com os trilhos começa em 1960, quando ele passou a trabalhar como guarda-freios na Rede Ferroviária, aos 22 anos. “Eu auxiliava o freio do trem na descida das serras, ficava em cima das máquinas, levando chuva, sol e sereno. Dependendo da composição, eram escalados até cinco homens para dar o breque na locomotiva”, relata.
Nos dias de chuva, os guarda-freios usavam uma capa para se proteger. “Molhado, o capote pesava 20 quilos”, ressalta, acrescentando que viu muitos amigos se acidentarem e morrerem, desempenhando a função. “Tinha gente que quebrava perna, quebrava braço, se aposentava por invalidez. Graças a Deus, nunca tive nada.”
Em 17 anos como guarda-freio, Jovide acompanhou o auge das usinas de açúcar, que usavam os trilhos para escoar o produto. “Viajei bastante nos trens de carga. Saía da Estação Cinco Pontas para Salgueiro, Aliança, Palmares. Tinha muita usina moendo e a gente praticamente não parava. Eu dobrava o serviço porque não tinha substituto”, recorda.
A viagem Recife-Salgueiro, diz ele, demorava cerca de dez horas para a tripulação que partia do Recife. “O caminho é pela Serra das Russas, a paisagem mais bonita das ferrovias de Pernambuco. A gente subia no trem às 5h20 e descia em Sertânia lá pelas 14h. Na estação, éramos substituídos por outra turma e a composição seguia para Salgueiro. Chegava ao destino final umas 22h.”
Aos 39 anos de idade, promovido a condutor, ganhou o direito de viajar dentro dos vagões, com mais conforto. E descobriu que ferroviário é feito marinheiro: tem um amor em cada estação. “Era muito melhor trabalhar no trem de passageiros”, exclama. Entre idas e vindas nos trilhos de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, Jovide conquistou sete mulheres e espalhou oito filhos Brasil a fora.
“Só dois são da mesma mãe. Tenho filhos em São Paulo, Campina Grande, Olinda, Jaboatão e Recife. A gente quando é novo, tem muito gás”, brinca, ao explicar como dava conta das namoradas. Logo em seguida, avisa que sempre respeitou o local de trabalho. “Nas viagens, eu só fazia marcar o encontro. Até porque, como chefe do trem, não permitia gente xumbregando nos vagões.”
A atual esposa, com quem vive há 33 anos, ele conheceu numa viagem Recife-Sertânia. “Ela subiu em Caruaru. Peguei o bilhete, reparei que era viúva porque tinha duas alianças no dedo, olhei o destino e me apresentei”, resume. “Ele falou de Caruaru até Sertânia. Disse até quanto ganhava. Não era bonito, mas sabia conversar”, diz, com um sorriso discreto, Josefa de Souza Santos, 63, a eleita.
Além de abrir portas paras as paqueras, ser ferroviário era sinônimo de crédito nas ruas, afirma. “Em Jaboatão, eles botavam banca. No açougue, o melhor pedaço de carne era reservado aos ferroviários”, informa. Jovide assumiu a chefia do trem faltando seis anos para a aposentadoria.
Desligado da RFFSA há 24 anos, ele guarda o apito com a bandeirinha verde que usava como chefe do trem para avisar a hora da partida. “O maquinista só saía quando eu apitava.” Conserva, também, o alicate de condutor e a chave de ligar a luz do trem, do guarda-freios. “Aproveitei bem a vida e tenho filhos maravilhosos”, finaliza.